Comadres modernas

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 9 de junho de 2014 | 12:43


Elas nunca haviam celebrado qualquer comadrio. Foram de igreja na juventude, mas não eram mais quando se conheceram. Contudo, eram madrinhas, sim, dos filhos uma da outra, sempre curiosas, querendo saber das novas conquistas dos rebentos, conselheiras, guardiãs. E foram vivendo juntas ao longo de décadas. Uns longos dias, ficavam completamente juntas, tecendo a trama das novidades. E também cruzar uns fios dos dias atuais, para dar-lhes sentido. Umas longas semanas e meses, nem se ligavam, apesar do celular, da internet. Parece que era o tempo necessário para se lançar um olhar amplo e transparente sobre a teia do vivido. E perguntar o que significaria tal emaranhado de fatos e opiniões.
Uma impunha à outra seus longos períodos de reclusão, mergulhadas em seus abismos mentais, baratinadas, lacrimosas, como os que têm saudades de galos, noites e quintais. Ou iam a cachoeiras, faziam hidroginástica, dirigiam de um lado para outro sem sequer olhar a estrada, cabeleiras balançando e conversando como se não houvesse faixas amarelas na pista.
Falavam discretamente de suas dúvidas amorosas. Ficar ou não ficar. Eis a questão. E pesa daqui, pesa de lá, os prós e os contras, mas essa conta nunca fecha. Uns tempos ficam, outros não ficam, abandonam, voltam, têm saudade, namoram outros e outras, fazem mesquinharia, sabe, inveja mesmo uma na outra: eu tenho, você não tem.
Um dia elas resolveram se experimentar nos toques corporais. Para quê? Séculos e séculos de divórcio completo. Mas aqui e ali um recadinho deixado na nuvem. Uma foto, uma curtida, um comentário... Assim não morre o comadrio.
Um dia, elas estão na cama de casal de uma, que conversa com o mundo num dispositivo móvel. A outra faz crochê para parar o pensamento e, de repente, diz à companheira de cobertor quentinho: somos comadres! E desata num riso desatinado, longos minutos. É instantâneo. As duas começam a brincar de comadres. Rola até uma fofoquinha. Mas tudo por amar àqueles, e mais àquelas, sobre quem se fofoca.
Uma guarda a panela de barro da outra. A outra pede emprestadas peças da indumentária da comadre, pois não pode suportar a existência sem sua beleza. Uma, quando as duas resolvem viajar juntas, fica longas horas escolhendo as músicas que possam soar toda a trilha da viagem. E uma mensagem perpassa as longas horas harmoniosas de som. Não se precisa falar. É só olhar e ouvir. A outra se permite folga... e deixar o pensamento viajar a plagas só de sua alma, contando com alguém que compreende seu silêncio.
Uma não quer tirar os pés do chão nem para ir ao supermercado. A outra liga, manda torpedo, mensagem inbox: vamos ao churrasquinho, ao mercado central, ao cinema, tem uma peça de teatro do caralho. Mas a comadre mais grave, dada a monja, só ouve o que vai haver nas ondas do rádio.
Uma descasou pra nunca mais. A outra é casadoira. Uma rouba as idéias da outra... Não é por mal. É porque, se uma tem a ideia, mas não pode fazê-la criar pernas na Terra, a outra pode. E essa mesma puxa a outra para a horta, as plantas, os bichos, as gentes, as comidas, os tricôs, os crochês, os shows.
Comadres modernas. Há tradições que não podem morrer. Embora nem pareçam tradições.
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