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As favas, a fome e o desejo

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 29 de junho de 2014 | 18:53



Ângela era a rapinha do tacho de uma família de sete irmãos, radicada na região rural de Liberatos, em Betim. Seu pai era meeiro em uma fazenda e sua mãe agricultora em fazenda vizinha.
Diz-se que uma pirraça da Ângela, dessas que toda criança precisa um dia fazer, ficou antológica na memória da família. A fome grassava naqueles meados do século 20, numa cidade interiorana como era a Betim de então. Não raro, o jantar era um ralo caldo de fubá. Pão era para domingo. Porém, interessante lembrar, a família plantava e beneficiava muito do que comia. Os irmãos mais velhos de Ângela trabalhavam na roça. Os que ficavam em casa cuidavam uns dos outros, faziam comida, já deixada adiantada toda noite, e levavam marmita para os familiares nos campos. 
Ângela ia com sua mãe, pois, caçulinha, ainda era amamentada. Deu que o prato do dia, no almoço, tinha favas. Sentada diante de seu prato, Ângela gritava, berrava, esperneava o que todos gostariam de gritar, berrar, espernear: "Quero fava não, diabo! Quero feijão!" Isso, repetidas vezes.
As favas, preparadas às pressas, tinham um gosto amargo, graça nenhuma... É claro que a mãe de Ângela pôs paradeiro à sua pirraça. Era mulher guerreira. Sabia que ali, a ordem era a fome, não o desejo. O feijão era o desejo. O feijão dos sonhos. 
Os familiares de Ângela continuaram trabalhando muito e migraram para o bairro Angola, graças principalmente à chefia da mãe de Ângela, lavadeira, cozinheira e benzedeira. 
E Ângela foi ficando livre das favas em seu cardápio. Ao final do século XX, sua casa oferecia às visitas as melhores guloseimas produzidas pela indústria, inclusive um famoso purê de batatas com leite em pó. Muito recentemente, ela manifestou seu imenso gosto por carnes, o que, no Brasil, para a maioria, é o oposto da pobreza.
E, junto com Ângela, acho que o Brasil inteiro se tornou menos dependente de favas e ganhou mais acesso aos feijões e às carnes.
Morreram o pai e a mãe de Ângela, para sua grande dor, e ela, embora caçula, tornou-se então a matriarca: a mulher que liderava, que ligava os mais velhos aos mais jovens, que animava as festas, que guardava os documentos de memória.
Descasou e criou com maestria seu filho único, tornado um príncipe. Nesses assuntos de amor, foi como sua mãe: jamais aceitou viver infeliz.
Conquistou sua casa trabalhando por décadas para uma família que, inevitavelmente, muito a amou. Sua casa era prática, pois Ângela, assim como outras mulheres livres de sua família, não aceitava escravidão no lar. Importante mesmo era uma grande varanda para cultivar numerosas plantas e receber gente para festejar.
Um dia a alma de Ângela virou para sua forma e disse carinhosamente: combati o bom combate e ganhei passaporte para um mundo ainda mais feliz que este. 
A forma, prontamente. Embora só estivesse na Terra havia sessenta anos. Mas, com coragem, virou para a alma e disse: posso fazer três pedidos? A alma, prontamente.
Quero coroar a minha vida, quero partir rápido e não quero perder a minha beleza, disse Ângela. A alma só avisou: vai doer um pouquinho mais.
Combinadas, a alma e a forma foram meteóricas. Ângela escolheu uma igreja para frequentar, onde sua estrela logo brilhou e foi reconhecida publicamente. Casou, em pompa e circunstância, com um homem que já amava de longa data, mas ao qual tinha pedido algumas mudanças de comportamento. Ele o fez. Reuniu a família várias vezes, para ensinar como se podia continuar a cultivar a união, o afeto e a alegria.
Então, na viagem simultânea de lua-de-mel, Natal, Ano Novo e férias, a forma entrou em falência. O médico avisou ao príncipe: irreversível. O príncipe coordenou uma despedida impecável, com festa e tudo, protegendo a privacidade e o bem-estar de Ângela.
Como prometera a alma, doeu, mas foi rápido.
Nos serviços finais, a família e amigos deram elegância de presente à Ângela. Olhava-se por todo canto e se via uma gente que tinha superado as favas e a fome, sem exceção. O príncipe a vestiu de rainha e seu amado lhe fez um carinhoso plantão. Tinha dado tempo até de Ângela ter bisneto!
A forma de Ângela desceu ao subsolo da Terra exatamente em sua data natalícia. E sua alma ganhou um mundo de mais luz, permanecendo na memória.
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