Home » » O livro das misses

O livro das misses

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 6 de julho de 2014 | 08:52

Outro dia, tive lances de uma conversa memorável com um menino pequeno. Começou com sua mãe lhe dando uma "dura" por causa de sapatos. Dos meandros, só me lembro que, em resposta à minha afirmação de que os adultos só falam bobagem, né Francisco? - Ele me disse: "então você está falando bobagem...". Ainda bem que meu pescoço segurou a cabeça. Vejam que crítica ele fez a O Pequeno Príncipe, livro que eu tinha acabado de debater num encontro literário: "será que os adultos falam mesmo sempre bobagem?"
Só sei que, no decorrer, eu disse a ele que não gostava de meu nome, composto, porque o segundo nome significa: aquela que manca, aquela que claudica, aquela que não decide. Assumir as influências do próprio nome às vezes é difícil. Eu preferiria ter no meu nome um certo "glamour" das letras duplicadas, além do posicionamento político-cultural por uma latinoamérica mais misturada, miscigenada, tão indígena quanto africana, e tão pouco lusa. Eu preferiria que houvesse uma língua brasileira, uma língua costarriquenha, uma língua colombiana, sei lá. Línguas latinoamericanas. Nós não falamos como nossos antigos colonizadores, embora a nossa língua seja chamada de portuguesa. Escrevemos como eles, no "padrão da língua", para não nos emanciparmos linguisticamente, e fazermos parte da Europa, que é o cafona ideal de nossas elites dirigentes, desde sempre.
Disse-lhe a mãe: “se você lhe der um nome, ela pode usá-lo como pseudônimo”. E explicou o que era pseudônimo, diante da livre e desembaraçada pergunta do pequeno.
Então Francisco correu na praça, fez várias estripulias, antes de me dizer: "então seu nome vai ser Bruxa do Bem". Ainda bem que meu pescoço segurou a cabeça. Eu não coube em mim de contentamento. Ele viu um de meus desejos, como se eles estivessem transparentes. Transparentes como a imagem que desejo ver de mim em meu espelho. Transparentes como o desenho de uma cobra que devorara um elefante, e que era sempre vista pelos adultos como um chapéu, em O Pequeno Príncipe.
Em nosso encontro literário, acabáramos de discutir O Pequeno Príncipe. Rasgamos seda sobre ele. Jogamos pétalas de rosa sobre ele. Nós o incensamos. Mas também dissemos que essa infância loura, angelical, da ingenuidade, da liberdade para ver e dizer verdades, é nossa utopia. Há muitas infâncias e nem todas elas podem usufruir desse nosso grande desejo de uma infância livre, saudável, feliz.
Não são apenas as infâncias ricas que são saudáveis. Eu uma vez vi a liberdade e a felicidade dos meninos de uma aldeia de pescadores, apesar de trabalharem na infância. Mas a infância de Francisco é rica de tudo, inclusive de oportunidades para expressar verdades invisíveis ao senso-comum, quer dizer, àqueles cuja infância foi assassinada dentro de si: os adultos. Os adultos são, como disse a Legião Urbana, “os senhores da guerra [que] não gostam de crianças”.
Ser uma bruxa do bem exige tempo, idade, observação. Espero que Francisco tenha visto meu futuro em sua transparente bola de cristal. O meu desiderato é embaralhar palavras, como cartas, e delas fazer os feitiços do bem.
Francisco tem angelicais cabelos de um Pequeno Príncipe. Mas, melhor ainda, são cabelos negros, emoldurando um rosto negro e uma risada brasileira.
A infância das nossas mais belas utopias existe. Para muitas crianças, inclusive dentre as bastante pobres, essa infância existe. Aleluia. Digam lá, companheiros de Alá, de Buda, como se louva nessas tradições... Nós somos capazes de instaurar nossas utopias no mundo, como disse apaixonada e inteligentemente, Márcia, no encontro literário. E estamos lutando para universalizá-la, ainda que ao custo dos erros, tropeços, topadas que advêm da condição humana.
Dizem que o Pequeno Príncipe é o livro das misses. Não pára de vender desde que foi publicado, na Segunda Grande Guerra. Quando se faz às misses a estúpida pergunta: “qual é seu livro preferido?", elas quase sempre respondem que é o Pequeno Príncipe. Uma inteligente fórmula para não errar. Esta obra sintetiza nossos melhores desejos para a criança, ainda que com suas inflexões etnocêntricas. As misses não são bobas. Ela geralmente acabaram de viver a febre de pequeno príncipe pela qual todos passamos na escola ou no resto da vida. Para responder a uma pergunta estúpida, é preciso estratégia: responder com um “universal” da cultura. Um dogma, aquilo que ninguém questiona.
Como o leitor pode ver, eu não acredito em pequenos príncipes. Mas que los hay, los hay. Gracias a la vida.
SHARE

0 comentários :

Postar um comentário