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Antes do bullying

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 7 de março de 2015 | 01:44

Dona Vera era uma professora já às vésperas da aposentadoria. Titular da cátedra de Língua Portuguesa, ensinava o falar materno às antigas. Com muitos exercícios de gramática para fixar e uma rígida disciplina em classe. Os que dela se lembram não conseguem entender como pudera ser tão amada. Não deixava aluno sair da classe para ir ao banheiro ou beber água. Para isso existia a hora do recreio, segundo a professora.
Chegava à escola sempre bem antes do início das aulas e apenas se ia quando já não restava ninguém. Recolhia cadernos para corrigir, entregava seus registros sem rasuras, sempre na data certa. Trabalhava nos turnos matutino e vespertino, portando-se cotidianamente como a bela mulher que era. Ainda que brilhasse no alto do céu o sol dos trópicos. Maquiagem sempre em dia, roupas que se ajustavam às suas belas e generosas curvas, e ainda assim jamais se viu quem lhe faltasse com o respeito.
Dirigia-se aos alunos como meu jovem, minha jovem. Queira se assentar. Por gentileza, levante a mão e aguarde sua vez para falar. Não admitia que não se fizesse o dever de casa, o que muitas vezes significava conjugar um verbo em todos os seus tempos e modos. Não repetia prova nem mesmo diante de atestado médico. Quando ela chegava ao trabalho, os meninos corriam para a fila, sussurrando: aí vem Dona Vera!
Um dos alunos morava no mesmo prédio da professora e contava que os vizinhos ouviam seus saltos subindo as escadas, e as portas se abriam vagarosamente para que as curiosas donas-de-casa tentassem adivinhar o perfume do dia. De todas as habitantes do elegante edifício, apenas Dona Vera trabalhava fora. E morava sozinha no último andar.
Uma vez matriculou-se um menino em sua classe. Totalmente diferente dos rosados e bem nutridos alunos da escola. Era raquítico, pálido, silencioso, usava roupas de segunda mão, sempre muito desgastadas. Os colegas tinham asco e não se aproximavam dele. E, para piorar, o menino não conseguia grafar uma só palavra da Língua Portuguesa.
Na sala dos professores, em pesado silêncio, aguardava-se curiosamente o posicionamento de Dona Vera. Pois era óbvio que ela não admitiria tal degeneração em sua classe. Cadernos sempre amassados e sujos. Material sempre incompleto. A direção sofria pressões para retirar o aluno da escola, mas tratava-se do filho da mais prestimosa zeladora. Era bolsista.
Dona Vera, que permanecia sempre sentada em sua mesa, de onde distribuía as instruções e onde recebia tímidos alunos para tirarem dúvidas, levantou-se de seu lugar na segunda semana após a matrícula do menino e foi sentar-se ao seu lado. Pequenos olhares assustados não tinham dúvidas: era o fim da presença do bolsista na classe. Mas Dona Vera passou uns textos naquelas encardidas folhas de caderno, tomou leitura, fez ditado, pediu cópia. Nenhuma reprimenda fez ao aluno e voltou à sua mesa. Ao final da aula, informou à classe: de hoje em diante, quinze minutos de cada aula serão dedicados ao Joaquim. Durante a aula de Joaquim, vocês permanecerão silenciosos em seus lugares aguardando que eu acabe, e então poderão me solicitar. A reação a isso foi um silêncio sepulcral.
Joaquim costumava se esconder na hora do recreio para não tomar tapas na cabeça, para não receber terríveis apelidos, para não sair sangrando de qualquer agressão que sofresse. A salvação era ser pequenino, meter-se em qualquer buraco, e ter mãe trabalhando na escola. Muitas vezes, o esconderijo era a porta da cantina.
Um dia, Dona Vera chegou muito adiantada e surpreendeu uns garotos submetendo Joaquim a um corredor polonês. Nada disse. Aproximou-se. Ao sentirem sua presença, os garotos quase alcançaram o milagre da invisibilidade. Ela olhou cada um, citando-o por nome, e disse com baixa e pausada voz: aguardo os senhores em meu gabinete, em fila e sem qualquer ruído enquanto esperam.
Não se sabe o que disse Dona Vera a cada um dos oito garotos que entraram em seu gabinete. Sabem todos que os garotos saíram de olhos vermelhos, calados, e que Dona Vera, pela primeira vez em décadas, chegou atrasada à sala de aula onde, disciplinadamente, esperavam-na seus alunos.
Dia seguinte, a surpresa. Um dos garotos autores do corredor polonês chegou à classe de Dona Vera, pediu licença, cumprimentou e informou que vinha exercer sua monitoria. Dona Vera chamou-o com o dedo até sua mesa, apresentou-lhe algumas folhas mimeografadas, deu instruções em voz baixa, e o garoto, para pasmo geral, dirigiu-se à mesa de Joaquim, onde lhe ensinou as lições.
E assim, dia-após-dia, compareceram à classe todos os protagonistas do corredor polonês. Finda a primeira rodada, teve início a segunda. E assim até o final do ano.
Joaquim nunca chegou a ser brilhante com Dona Vera ou com qualquer outro professor.  Passava sempre raspando e às vezes precisava que o conselho de classe lhe concedesse um ou dois pontos. Mas todos sabiam que nenhuma crueldade podia ser feita àquele menino. Dona Vera parecia ter um terceiro olho e flagrava qualquer esboço de tentativa.
No álbum de formandos de 1972, está a foto de Joaquim. Sabe-se que ele não compareceu à celebração, pois sua família não pudera arcar com os custos. Mas um longo e emocionado texto, na inconfundível caligrafia de Dona Vera, cheia de nuanças e laços, encontra-se, amarelado, entre as páginas de fotos. Trata-se do discurso de paraninfa, no qual Dona Vera disserta sobre o quanto aprendeu com Joaquim.
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