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Causo de amor no Angola

Written By Ana Claudia Gomes on quarta-feira, 13 de maio de 2015 | 07:49


Consola era uma betinense do Liberatos e viera morar no Angola quando a cidade ficou mais chique que o campo. Branquinha, bem feitinha de corpo, era de família pobre e começou a trabalhar ainda quase menina. Meados dos anos sessenta, trabalhava na pensão de seu Pedro e dona Naná, na Rua Doutor Gravatá, em seus áureos tempos art dèco. Ali se hospedavam os trabalhadores das empreiteiras que construíam a Refinaria Gabriel Passos. 
Consola era tão prendada, que o dono da pensão deu ordens de que nenhum rapaz a molestasse. A pensão vivia um brinco. E os rapazes todos olho-vivo. Era menina pra casar.
Andava meio comprometida. Sob os cuidados da irmã mais velha, fora a um parque de diversões instalado na Nicolau Alves de Melo. Parque na cidade: acontecimento. Um rapaz a abordou, pediu para acompanhá-la até à casa. Que, no caso, era a pensão. Onde Consola dormia para madrugar a tempo de fazer o café-da-manhã dos trabalhadores.
Adelino morava na mesma pensão e tinha como íntimo amigo um guapo mulato, Francisco. Capixaba para os íntimos. Este não nascera no Espírito Santo, mas na remota Alvarenga, das próprias Minas. E agora morava numa república, ali pelas alturas do atual Bar do Coxinha, trazendo também seus irmãos de sangue e de êxodo rural, Lourenço e Djalma. Este último, o cozinheiro dos republicanos. Um veio de ouro corria sobre a cidade.
Quem via o garbo de Francisco não dizia que calçara sapatos pela primeira vez há um ano. Andava só nos trinques. Usava as calças de linho do irmão Lourenço e mais camisas xadrezes muito estilosas.
A empreiteira o transferira da Rio-Bahia para a obra da Regap. E ele também pousou olhos desejosos sobre Consola. Disse ao amigo Adelino: vou tomar Consola desse rapaz. Esqueceu que nunca fora à escola e escreveu um bilhete: perciso falar com você. Jogou o bilhete pela janela da pensão justo quando Consola conversava com os patrões.
Consola tremeu com o bilhete na mão, escondeu-o, escondeu-se. Mas acabou ouvindo o pedido de Francisco para namorar. Mandou dizer por Mariinha, tendo esta transmitido o recado ao Adelino, que aceitava conversar com Francisco. Não foi por acaso que Adelino e Mariinha depois se casaram...
Um dos rapazes pensionistas, Raul, carinhosamente conhecido como cabelo-à-prova-d'água, espalhou as rivais intenções de Francisco entre os colegas da pensão. Houve uma conspiração para dar um corretivo em Francisco e a pensão ficou um agito só. Preto metido, não é mesmo?
Consola, temerosa do escândalo, pediu contas, para desespero do patrão. Este a cercou o dia todo, até saber por que ela queria se demitir. Quando soube o motivo, chamou um dos rapazes e ameaçou: se a Consola for embora, boto todo mundo no olho-da-rua. Fico sem nenhum de vocês, ameaçou, dedo-em-riste. Amofinados, os apaixonados e suas respectivas torcidas organizadas não tiveram senão.
Francisco foi à casa de Consola pedir ao pai permissão para o namoro. Seu Zico permitiu. Achou que o estilo daquele nêgo era um inequívoco sinal de que se tratava de um bom-partido para sua princesinha.
Os encontros eram na humilde sala, com a assídua presença do pai. No máximo podiam dar-se as mãos e o abraço de despedida. E se havia baile, a mãe de Consola ia, para vigiar. E também para dançar, que ela era uma arretada pé-de-valsa.
Mas a empreiteira transferiu de novo Francisco, desta vez para São Paulo. Antes de ir, sem se despedir, ele deixou no anular direito de Consola uma grossa aliança dourada, como era praxe antigamente. E se passaram os primeiros dias, depois os meses, deu um ano. Escrever cartas de amor pela pena dos outros não era mais fácil que escrever de próprio punho. Não houve cartas. 
A mãe de Consola, mulher experiente, não aguentou: deixa de bobagem, minha filha. Esses rapazes de trecho só querem se aproveitar das moças, depois desaparecem. Veja o caso da mocinha do Decamão, que tomou veneno depois de engravidar de um trecheiro casado.
Consola resistiu, mas um dia bateu preguinho atrás da porta do quarto e pendurou a aliança. A esperança é que não tinha jeito de pendurar.
E como os dias são um depois do outro, chegou aquele em que a irmã de Consola adentrou a casa esbaforida e soluçou: o Francisco vem aí! Consola correu aos saltos para o portão, a tempo de ver Francisco virando a esquina, passinho miúdo... Voltei para casar.
Foi uma correria. Para ter o vestido de noiva, foi preciso abrir mão do fotógrafo. Mesmo assim vestido alugado com barras sujas de terra vermelha, pois antes servira a uma noiva da roça... 
Casaram na Igreja Velha, apadrinhados por Dona Noemi e tantos outros amigos. E gratos aos cupidos Adelino e Mariinha. Não sem antes terem pagado pela cerimônia de casamento ao lendário Padre Osório.
Apertado no terno e nos sapatos, Francisco pingava suor pelos dedos da mão, como contam risonhos seus cunhados.
Francisco levou a princesinha Consola para correr mundo. Desceram, cada um com sua malinha de madeira, para a rodoviária de Betim, para tomar a jardineira... Consola em elegante calça verde de elanca, presente do pai, e duas colheres de latão, presente da mãe para o enxoval.
De norte a sul, de leste a oeste do Brasil, estiveram presentes na construção de estradas e barragens.
As tretas foram muitas, conto de outra vez. Como eram anos-de-chumbo, se o governo não pagava às empreiteiras, os salários de Francisco podiam atrasar seis meses. Felizmente, havia caderneta de armazém. O que não impediu que a aliança de Francisco precisasse ser vendida para alimentar com frutas sua filha que vos fala.
Mas o Bití jamais deixou de pulsar no coração de Consola. Ela sonhou por anos voltar do exílio. Voltou com família, continua admirada, e como estão por aí até hoje, posso dizer que esse causo de amor teve final feliz. 
O amor não é feliz todo dia. Mas da soma dos instantes é que ele se faz.
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