Ingazeiro. Fonte: wikipedia.
Faz quase vinte anos que o antigo leito do Rio Betim vem
sendo transformado em pista para a prática de esportes. Taí um projeto que
nenhuma administração local pôde abortar, pois a ideia se impôs. Tanto que
agora o governo do Estado também a adotou, e sepultará o rio morto numa grande
cova longitudinal, às margens da qual já há muito tempo caminhamos em busca do
Nirvana. O leito do rio parece que será chamado boulevard.
Eu gosto muito dessa ideia, desde o começo. Eventualmente,
caminho por lá. E como jamais logro alcançar o Nirvana, sempre tenho ocasião de
pensar mais um pedaço dessa transformação, para mim tão carregada de memória.
Minha avó e suas filhas lavaram roupas no Rio Betim. Por
isso ele me é sensível, e não porque eu queira restaurar o tempo em que as
mulheres carregavam trouxas e se valiam das pedras para alvejar lençóis e
camisas. Era um tempo de beleza, sim, tal qual hoje. E de agruras. O que eu
gosto é que o espaço de existência do outrora caudaloso rio permaneça
despertando afetos nas gentes, seja por causa das memórias, seja pelo que se vê
e vive agora. O que eu gosto é que ele seja motivo de combates e assim se
escrevam as tortuosas linhas da história.
Têm sido tantas as surpresas nas caminhadas... Um dia, li
uma placa que alertava para a presença de peixes nas águas próximas ao Hospital
Regional, um feliz sinal de que projetos de despoluição do rio poderiam dar
resultados. Outra vez, vi um grupo de jovens construindo aparelhos para a
prática de novos esportes urbanos, assim como já surgira antes a pista de
skate, o ginásio, o horto, a pista de ciclismo e os equipamentos da academia
popular. Bem como as placas demarcando cada cem metros.
Já enfrentei nuvens de pernilongos ao anoitecer caminhando,
e tive amigo atendido na emergência por ter caído no rio e engolido um naco das
águas. Já vi fotos do balneário na antiga cachoeira e soube que, conforme a sua
situação social, a pessoa podia nadar em determinado lugar, mas não em outro...
Outro dia, fui apresentada aos ingazeiros que margeiam o
estreito canal remanescente. Um cidadão parou diante do gradil e colheu ingás
das árvores que ainda não se impõem na paisagem, podendo, portanto, ser
estirpadas. Eu mal reparei na cena, que foi percebida pela minha companheira de
caminhada, versada em plantas, amiga delas. Ela observou os frutos e concluiu
se tratarem de ingás, que eu nunca tinha visto ou experimentado, mas que remeti
imediatamente ao fato de que o bairro às margens do rio recebeu o nome de Ingá,
devendo-se isso certamente à presença dessa planta entre as nativas da mata
local. Por isso, deve ter sido preservada a Matinha do Ingá.
Olhei para a regularidade em linha dos ingazeiros e pensei
que a ideia do boulevard é antiga e vem sendo aperfeiçoada. A minha companheira
quis relembrar o gosto dos ingás, e colheu os frutos, levando-os à boca e os
expulsando imediatamente, numa careta que demonstrava a distância entre a
memória dos ingás e os ingás de agora. Filha de uma cultura da assepsia, não
pude deixar de me perguntar se por acaso a poluição das águas atravessa a
terra, as raízes, os caules e se expressa no gosto ruim dos ingás. Ou se
simplesmente o gosto é que mudou e hoje estamos mais afeitos aos picles do Mc
Donald’s que ao fruto do ingazeiro.
Pus-me a pensar nos Niemeyers, nos Lúcios Costas e nos Burle
Marx do boulevard. Será que eles acharão solução favorável aos ingazeiros? Eles
não são nativos, não são centenários, foram ali postos por alguém que sentia
saudades. E como o boulevard precisa ficar pronto e lindo em quatro anos, pois
então acaba a gestão, será que os ingazeiros terão porte e linguagem suficiente
para sobreviver?
Ora, isso parece uma questão tão banal... Mas toca na
sacralidade das árvores, na nova acepção da preservação de matas e constituição
de parques. Na construção desenfreada de monumentos que dêem às pessoas motivo
para permanecer.
Eu me pergunto sobre o aspecto desse boulevard. Será coberto
o canal e caminharemos sobre seu longo jazigo? Há retomada possível dos
projetos de despoluição e revitalização das águas, ou os rios são como os
úteros que, depois de dados os filhos, só servem para dar câncer? Ou seja,
enchentes, pernilongos, doenças e uma identitária fedentina?
Quais engenhocas terá o boulevard para mover o corpo e
paralisar a mente? Como faremos para nele cruzar com cachorros mal-encarados,
puxados em coleiras por seus donos, sentindo medo de ambos? Como
estratificaremos o espaço para também caberem as emergentes bikes que nos tiram
fininhos? Como lidaremos com a saturação de ensinamentos sobre o caminhar
saudável, os tênis adequados, a postura ereta, o indefectível dispositivo móvel
de som? E com a ideia de que correr é superior a caminhar?
Sim, caminhar é preciso. Tanto faz caminhar do nada para
lugar nenhum, auferindo ao final a sensação de bem-estar proporcionada pelas
endorfinas, serotoninas e dopaminas e tendo a exata medida dos milhares de
metros percorridos? Ou é diferente caminhar da casa para o rio, com a trouxa na
cabeça, ora mal-cheirosa, ora límpida, e do centro para o bairro, com as frutas
do sacolão? Qual é o sentido do caminhar?
Não tenho opinião formada sobre o que fazer do Rio Betim e
de sua memória. Fato é que já foi destruído e não poderá ser mais do que pálida
lembrança do que era. Mas tendo lido as palavras de Fernando Pessoa sobre o rio
de sua aldeia, não posso passar incólume por suas agora retas margens. E
resolvi caminhar deste para um rio maior, o Parauapebas.
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