Indumentária como pedagogia
Written By Ana Claudia Gomes on quarta-feira, 27 de setembro de 2017 | 20:29
Há algum tempo, em oportunidade de pesquisa sobre história da educação, encontrei relatos sobre uma prestigiosa professora cujo trabalho foi reconhecido por muitos anos como gestora de escolas. Dos registros escritos, depoimentos e fotografias, saltava aos meus olhos subjetivos a extrema atenção dedicada por esta venerável professora ao modo de se vestir das colegas que contratava e dirigia.
Contam que já na entrevista para admissão, aquela senhora dispensava cuidadosas orientações e claras exigências sobre como suas professoras deveriam se vestir. Estavam incluídos ensinamentos sobre como alisar os cabelos com toucas e depois cacheá-los com bobs. Sobre a necessidade de uma discreta, mas cuidadosa maquiagem. Sobre o cuidado ao passar os vincos das roupas, combinar o liso e o estampado, sobre a importância dos saltos e das meias finas. Sobre ser proibido usar calças compridas até que, para cá dos anos setenta, numa carinhosa insurreição, as professoras adquiriram esse direito. Mas então as admoestações sobre como usar calças foram acrescentadas ao breviário geral.
Ouvi dizer também que tais exigências não se limitavam ao tempo de permanência no ambiente de trabalho, mas que as professoras deveriam se portar da mesma maneira em todos os ambientes. E que também não atingiam apenas a indumentária, mas, igualmente, o comportamento social, devendo as professoras dessexualizar a vida, evitar o desfrute em locais públicos de lazer e jamais apresentar quaisquer comportamentos desviantes da moral e dos bons costumes vigentes. Fenômenos fartamente conhecidos da história do magistério.
Entre risos, as depoentes lembravam que o salário mal dava para manter um figurino assim ilibado. Por isso, as professoras selecionadas precisavam ser filhas ou esposas em famílias relativamente abastadas.
Nas fotos que vi, observei realmente a beleza, a elegância, uma certa aristocracia das professoras, considerando que esses conceitos são mutáveis.
Minha formação não me permitiu, é certo, deixar de perguntar se algumas teriam sido excluídas já na admissão pelas marcas da origem popular ou étnica no corpo. Mas guardei dessa interessante líder na educação a percepção de que, para ela, os corpos das professoras e sua indumentária ensinavam.
Em minha trajetória como professora, vez por outra me deparei com diversas facetas deste mesmo interessante fenômeno. Uma vez estudantes de uma classe levantaram contra uma professora minha colega o argumento de que ia trabalhar um tanto suja, com um cheiro de banho atrasado, com roupa rasgada ou até com um forte carimbo do ferro de passar na calça comprida. Observei assim como professoras bonitas, especialmente aquelas que se adequam aos padrões da moda, têm nesse comportamento um forte elemento de atração do respeito dos estudantes. Eu mesma devo os sucessos de um dia a um sapato da moda, a um vestido, a um anel. Um sapato-fusca, do Ronaldo Fraga, perdoem-me a alusão à marca, mas era obra assinada, causou os olhares mais aprendizes possíveis até então.
Lembro da minha infância, quando pela primeira vez residi num edifício de apartamentos. No último andar morava um casal de professores. Além do fato de não terem filhos ao longo dos anos e permanecerem vivendo como namorados, a vizinhança comentava muito as roupas e o perfume que deixavam pelos andares quando subiam e desciam as escadas. Além de que, para espanto geral, não advinham ruídos incômodos do apartamento desses professores.
Hoje vejo que, para a maioria dos professores, as condições de investir na indumentária são adversas. As jornadas são multiplicadas, os salários são baixos e os diretores não fazem exigências de figurino na admissão - o que aliás eu jamais defenderia. Prevalece o bom e velho jeans, que nunca envelhece, e aquilo que todo o mundo está usando agora. As admoestações sobre a indumentária, entretanto, prevalecem, e vêm de fontes difusas, profissionais ou estudantis.
Uma gentil estudante, de quem recebo acolhedores abraços, cochichou comigo sobre eu não gostar de sutiã. Mas professora, por que você não usa com bojo? Fica lindo e o peito fica maior. Lembrei da fogueira feminista, lembrei de quem eu sou, mas geralmente encaro sutiãs.
Uma outra estudante me avisou discretamente que meu vestido estava um pouco transparente. E não vejo professoras com roupas curtas, decotes acentuados, além de que os curtíssimos shorts da estética "novinha" são terminantemente proibidos às estudantes.
Mesmo nos tempos das biopolíticas, há limites que não se podem exceder.
Entretanto, na perspectiva da inscrição das bandeiras nos corpos, tenho eu mesmo experimentado algumas ações nesse sentido e conversado com colegas que também o fazem. Recentemente soube do frisson causado por uma professora com sua camisa branca de mangas longas, sua calça em risca de giz, cintura marcada por um fino cinto e uma destacada gravata masculina. Para resumir, vamos dizer que a entrada, as aulas, o recreio e a saída foram tomados pela pedagogia da gravata. Outra professora fazia sua bijoux e com ela encantava Deus e o mundo. Aposentou-se, foi fazer bijoux.
De minha parte, adoto como inspiração a indumentária africana, a moda retrô, o uso prioritário de vestidos, grandes anéis e colares, peças artesanais, os cabelos ao natural, com cachos confusos e cada vez mais grisalhos, coisas assim. Não é raro que a minha circulação pelas escolas provoque tanto rasgados elogios quanto indisfarçáveis sustos. As perguntas sobre minha religiosidade são muitas, por causa da referência afro. Alguns estudantes parecem ter medo, mas a maioria parece demonstrar a reação que considero mais pedagógica. Que é perguntar-se sobre o que é belo e o que é feio. Sobre o que é certo ou errado. Sobre o que é de Deus e o que não é.
Uma vez ganhei um dreadlock de um dileto amigo e por causa disso muita aula boa pude dar. É claro que aí também ganhei uma pulseirinha verde-amarelo-vermelha e tive que suspender o planejamento para falar de piercings e tatuagens. O que, aliás, foi um prazer.
Numas vésperas de carnaval, resolvi imitar um outro dileto amigo do teatro. Fui trabalhar fantasiada, já saindo assim de casa, tomando dois ônibus, e portanto iniciei a jornada com uma hora de antecedência. O vestido era retrô, o colar tinha referências afro e estava atravessado no corpo como fazem os religiosos de terreiros; nos cabelos uma tiara de borboletas dada de presente por outra dileta amiga. E entre as sombracelhas um strass, à moda das esotéricas.
Em cada comunidade, uma reação. Numa delas, a garotada me cercava como pintinhos à galinha. Professora, você está linda... O que é isso na sua testa? Como você conseguiu colar aí? E como não basta ser professora, tem que participar, dancei as marchinhas. Não é muito minha praia não.
Em outra comunidade, mais silêncio do que tudo. Ares de medo. E finalmente um estudante adolescente muito meu chegado. Aliás um forte adversário intelectual a quem muito respeito por seu imenso saber. Professora, você está parecendo um santo. E um colega, graças a Deus alma de borboleta, olhou minha tiara e soprou: isso a alma voa.
Agora, o caso insuperável é o da bolsa-galinha, ganhada de outra amiga dileta. O que me obriga a reconhecer meus todos diletos amigos. A bolsa atrai olhares como um magneto e depois as pessoas olham para o rosto de quem usa um acessório tão simbólico, com curiosidade, riso, terror.
Para mim, o ápice da bolsa-galinha foi quando voltei a um museu, um mês após tê-lo visitado. E a segurança do prédio me chamou já na minha saída e perguntou pela bolsa-galinha que eu usara pela primeira vez. Eu tinha pressa, mas fiz questão de conversar com a gentil moça sobre a pedagogia da bolsa-galinha. E depois disso estou pensando em aposentá-la e a manter como peça de memória.
Embora numa contra-corrente, não deixo de ser professora por minha indumentária. Muito pelo contrário. Dia desses, num café, uma moça das Índias me cumprimentou. Você é professora, né? E eu, uai, como você sabe? Pela biopolítica, ela riu.
De forma que com reverência me remeto à minha professora de didática no curso médio de magistério: professores devem andar bonitos. E dou graças por essa palavra bonito ser tão polissêmica.
0 comentários :
Postar um comentário