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A memória em Betim - Geraldo Fonseca

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 16 de abril de 2018 | 17:23

Carta da Sesmaria conferida a Joseph Rodrigues Betim
Documento localizado no APM por Geraldo Fonseca

A memória é um território contestado. Não apenas o digo eu, mas todos os historiadores da minha geração e, antes de nós, algumas décadas.
Em Betim, sinto esse fundamento em minha pele, pois escolhi a cidadania neste rincão há vinte e oito anos e aqui também viveram e vivem meus ancestrais. E apenas digo isso porque, para fazer memória betinense, esperam que se seja natural dos 376 km² artificialmente delimitados. Uma bobagem e um critério...
Não é por outro motivo que escolho um não-natural para começar mais este lugar de memória em Betim, na nuvem: Geraldo Fonseca, talvez o maior historiador que teve a cidade, tão questionado, mas tão bem guardado nas bibliotecas e estantes.
Geraldo Fonseca foi contratado pela Prefeitura de Betim na gestão de Newton Amaral Franco, o Bio, este que pode ter sido o primeiro prefeito municipal a investir maciçamente em memória. A política municipal estava naquele momento polarizada entre este líder e seu rival Osvaldo Franco. Bio buscava representar grupos mais tradicionais da cidade, radicados em seu território há mais tempo. Era época de instalação das primeiras grandes indústrias-âncoras na cidade, a refinaria e a montadora de veículos. Bio realizou as primeiras restaurações de imóveis antigos, a Casa da Cultura com destaque.
Osvaldo Franco parece ter orientado seus trabalhos mais com uma visão prioritária no futuro.
O historiador Geraldo Fonseca prestava serviços de pesquisa histórica a várias prefeituras. e encontrou recepção também em Betim. Era um pensador formado em tradição mais positivista, fortemente alicerçado em documentos escritos, criterioso na citação das fontes e dos arquivos, localizando grande massa de documentos no Arquivo Público Mineiro. Já recebia algumas influências das novas abordagens e documentos na História, por volta dos anos sessenta, tanto que realizou entrevistas e abordou levemente alguns temas considerados culturais, como por exemplo as festas populares betinenses. Evitava, porém, escrever a história do presente, ou das testemunhas vivas, dada a efervescência dos combates em torno da memória betinense.
Hoje, para algum historiador ou memorialista da cidade inovar em relação a Geraldo Fonseca, creio que só o pode fazer se tiver novas perguntas em relação ao passado. Por exemplo, se estuda uma instituição específica; se privilegia as fontes orais. Mas sempre deverá ir primeiro a "são" Geraldo Fonseca, para não cometer gafes.
O lançamento de seu livro sobre a história de Betim gerou grande polêmica no território. Os vivos interpretavam a narrativa com seus olhares de testemunhas e se surpreendiam ou se assustavam. Especialmente quando o historiador e seus arquivos contavam coisas espinhosas, como a não-nobreza das origens de Betim e a história do Padre Osório Braga.
Sobre a origem não-nobre, vale a pena ver de novo. Fonseca procurou demonstrar que José Rodrigues Betim, bandeirante, o primeiro sesmeiro do lugar, marca das raízes da colonização do Brasil pelos portugueses, nada ficou em Betim. Ele pertencia ao poderoso grupo de Borba Gato e só esperou que fosse reconhecida como sua esta terra que hoje pisamos, o que foi feito através de carta de sesmaria, e então foi embora. Estava marcando territórios e se fixou na bela, mais rica e mais charmosa Mateus Leme. Nada restou do bandeirante, nem sua casa ou dados sobre sua localização, segundo Geraldo Fonseca. Não deve ter sido pacífico para seus leitores saber que o bandeirante cujo nome batizou a cidade não a quis...
O poder do Padre Osório foi descrito com cuidado, porém todo leitor crítico pode perceber as fímbrias. O Padre teve em seu favor o ter lutado pelo antigo templo católico da localidade, a Igreja Velha, até sua morte. Mas sua atuação política sofre umas farpas.
No geral, a obra de Geraldo Fonseca teve pouco impacto sobre a memória que chegou à população. Sua extensa pesquisa sobre as ligações dos betinenses com revoltas contra os colonizadores portugueses e contra o poder os paulistas é praticamente desconhecida, e está lá, em sua obra, preto-no-branco.
Fonseca também manteve seu foco no centro tradicional da cidade, quando já havia outros núcleos populacionais no território betinense, como a população que se instalava próxima à Fiat, tendo o Jardim Teresópolis como núcleo; porém o Imbiruçu era muito mais antigo e importante para o abastecimento desde a colônia. Uma história ainda por fazer. Da Colônia Santa Izabel e adjacências, sabe-se muito. Isso se deve à população ali radicada involuntariamente, em geral.
Da fazenda Serra Negra, a maior da área de abrangência da Betim colonial, trouxe a grata informação de que era uma fazenda importante para as Minas, com ampla escravaria. Centenas. A cidade pode comemorar sobre a fazenda, mas não sobre a escravaria, que depois se concentrou no Angola, não tendo sido ainda devidamente pesquisada a presença dos afrodescendentes nessa região.
É que Betim cresceu em volta de vários núcleos regionais, e a história da migração precisa ser narrada, bem como os migrantes reconhecidos como cidadãos betinenses.
Geraldo Fonseca é, para mim, o patriarca de todos os que se dedicam aos estudos de memória na cidade. E neste aspecto, minha proposta é que sua obra seja reeditada, revista e anotada conforme novas conquistas da disciplina História e contribuições dos que sucederam nosso primeiro inspirador.
Uma reedição luxuosa, porque merecemos, e com grande tiragem, programação visual contemporânea e incorporação de outros estudos nas notas.
A massa de documentos encontrada por Geraldo Fonseca e devidamente identificada em sua obra, deve ser revisitada com as novas sensibilidades e perguntas dos historiadores e memorialistas apaixonados pela Betim.
Nesta seção, pretendo homenagear outros estudiosos, que pesquisaram a memória recente de Betim; os cultivadores de acervos fotográficos e documentais, que são diversos na cidade; os estudiosos de empresas e organizações, etc. E defender uma memória para todos, reconhecendo quem chegou, pois todos chegaram em algum momento, desde que Betim era pouso dos viajantes da exploração e do abastecimento e local de produção agrícola e pecuária, importante para o contexto das Minas naquele período.
Ora, Fonseca não estudou a milenar presença dos indígenas, sendo este grande desafio para a cidade, devido à dívida histórica que temos com nossa bela história ancestral.
A memória hoje é direito de todos. Com versões, com debates, com diversos pesquisadores.
Toda biblioteca deve ter uma seção para os estudos sobre a cidade. Os monumentos restantes por toda a parte, mas a maioria invisível, como os vestígios art decò espalhados no centro antigo; os becos e vielas de nossas redondezas; das mulheres, da população afro... Tantas lacunas.
E quanto mais lacunas, mais trabalho pela frente. Uma perspectiva alvissareira para as centenas de milhares dos betinenses, sem nenhum forasteiro. Isso nos garante a Constituição brasileira, agora vilipendiada, mas com conquistas já irreversíveis.
Uma perspectiva tanto ou mais alvissareira para os memorialistas e historiadores.
Contudo, salve Geraldo Fonseca.




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