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Qualquer um chorava

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 3 de janeiro de 2022 | 18:08

 


Uma vez, Rose deu de cara com a impossibilidade de um amor romântico. Isso não foi em um instante, mas ao longo de meses. Porém, foi mesmo em um instante que ela viu tal impossibilidade cintilar. Foi quando Wando lhe disse: eu tenho fotos maravilhosas desse outro amor que tive, mas não posso postar. Compõem o arquivo morto.

Morto. Morto. Morto.

Aquilo ecoou, ecoou. E parecia mesmo ter sido balbuciado em voz grave, de homem, do longínquo fundo de um túmulo.

Rose ficou em estado de choque. Ficou em silêncio durante toda a viagem. Wando dizia alguma curta frase, uma pergunta, um comentário, de vez em quando. E Rose respondia com voz cada vez mais fugidia, mais monossilábica, mais sumidamente feminina.

Depois dali, tudo o que lhe parecera grande naquele amor, impetuoso, perspectivo, passou a lhe parecer uma pálida nuvem rosa e laranja. Que subia cada vez mais alto aos céus, e Rose tentava segurá-la com um quase imperceptível fio, mas ela desaparecia de seu olhar, menor, menor, como nave que some para o vácuo.

A cada novo encontro que Rose queria muito e Wando também parecia querer, novas palavras cintilavam e Rose procurava a nuvem da qual sequer rastro restava. Frio. Enigmático. Calado. Morto. Cruel. Ferido. Encapsulado. Um sem número de palavras masculinas.

E milhares de vezes, que gostoso, amor. Que gostoso, amor...

Quando Wando ligava, Rose não mais conseguia falar desatadamente como antes porque não havia fala de volta. Silêncios se alongavam na linha e Wando dizia: fale. Eu gosto de ouvi-la falar.

Numa noite insone, ela imaginou que um dia ele lhe perguntasse: por que você não conversa mais comigo? Imaginou também infinitas possibilidades de respostas: não sei conversar com você; não consigo conversar com você. Eu gosto de conversar alegremente e meus monólogos faço sozinha, em voz alta.

No começo, eu estava certa de vislumbrar-lhe a alma em seu olhar. Mas aos poucos, você me parecia cada vez menos alma. Travado. Incapaz de um palavrão. De fazer diferente. De fazer crescer. E eu não me sentia mais à vontade para ser eu diante de você.

Imaginou que Wando então perguntasse, sempre querendo perscrutá-la, mas sem nunca dar feedback: o que você não conseguia ser diante de mim? Ao que Rose quereria responder aos borbotões, mas sabia já não ser mais capaz: alegre, vivaz, criativa, sonhadora, rebelde, inconstante, vulcânica, vasta, emotiva, líquida, desejosa, irônica, debochada, culta, política, morena, pecaminosa, poderosa, sincera, tímida, dissimulada, jogadora, carinhosa, generosa, controversa, labiríntica, sedenta, faminta, aquela que arde.

E tudo isso ela ainda era. Era mais que nunca. Mais agora.

Então Wando perguntaria, mas apenas o Wando imaginário: e esse nosso sexo intenso? Aos poucos desapareceria, respondeu já Rose à própria noite. Já que se eu não puder ver-lhe ou imaginar-lhe a alma, não há tesão. O tesão era pela pessoa imaginada e desejada e querida. Não pela carapaça inexpugnável.

Ou então, por outro caminho, Wando perguntaria de novo: por que você não conversa mais comigo? Ao que Rose responderia, mais lacunar: sua postura, sua atitude. Distante. Mental. Algo fora da encantadora finitude e mortalidade que me caracteriza. Sem estofo. Sem explosão.

Você não é o amor que me expande e me liberta. É o amor que me destrói. Que me quer submissa, disponível sempre aos mesmos horários e às mesmas cerimônias. Sempre às mesmas perguntas e respostas formais. Com menos vinho, com menos guloseimas, com menos músicas. Que me deixa à cama sem forças para as incontáveis coisas às quais a vida me chama.

Naquela mais uma estendida insônia, que Rose sabia valorizar, pois nela caminhava léguas, milhas, anos-luz, ela também imaginou dizer: eu tenho certeza de que você tem uma alma. Não a que eu imaginei ou gostaria de tocar, e por isso o compreendo e o liberto.

Então Rose foi navegar em rede social e leu: não seguir a bula de quem é comprimido. Riu, vivaz, e decretou: arquivo morto, jamais. Postou a foto.


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