Meu namorado, o Vento Norte

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 19 de agosto de 2014 | 10:53

É de se comemorar que quem conta um conto sempre aumenta um ponto. Essa história não é inteiramente de minha lavra. Sheerazade, em uma de suas muitas aparições recentes, esteve em minha casa e fez uma inspirada narrativa. Entretanto, como ela informou que as histórias contadas fazem mesmo sentido quando representam algo para quem conta, tanto quanto para quem ouve, eu me senti à vontade para aumentar o conto, conforme os pontos necessários.
Eu, que gosto de viver nas matas, já amei o Vento Norte. Ele chegava de quando em quando, sem avisar, e tornava a minha vida plena. Como era um vento moderno, escrevia cartas, que eu esperava ansiosamente.
Ao chegar, tomava-me em seus braços macios e me embalava, me amava, falava das aventuras vividas em suas andanças. Passava comigo um curto tempo, suficiente para renovar meu já imenso amor.
Porém, as visitas do Vento Norte começaram a rarear, rarear, até que, na época esperada, não veio mais. Aguardei dias e dias, semanas e semanas, mesmo meses. Perguntava notícias dele a todos quanto o conheciam. Ninguém o vira.
Eu já desistira de esperar. Mas a saudade não estancava.
Belo dia, senti seu sopro... Ele voltou!, comemorou meu coração. Ao vê-lo senti que não estava alegre como sempre. Tinha uma notícia boa para ele, ruim para mim: encontrara uma outra bela e preciosa mulher, a quem desejava agora amar.
Vaguei perdida pelas matas, tentando reencontrar os cheiros, os igarapés, os céus estrelados. Mas eles pareciam ausentes para mim. Então me lembrei de minha avó, sábia senhora, sempre pronta a socorrer a todos com suas bendições, sua folhinha de arruda, seus conselhos...
Viajei muitas e muitas léguas até chegar à casa de minha avó, num lugar, não por acaso, conhecido como Angola. Deitei-me em seu regaço e não queria mais deixá-lo. Passei dias e dias de cama, levantando para engolir pequenos bocados das refeições e tomar água ou café. Vez em quando, percebia seu olhar de esguelha e imaginava que ela queria saber a razão da minha tristeza.
Certa tarde, assomou à porta do quarto em que eu cultivava minha autopiedade e anunciou o café. Levantei desanimada e lá estavam, sobre a pia, as quatro garrafas de café da minha avó. Uma trazia café forte e amargo; outra, café forte e doce; uma terceira, café fraco e amargo; e a última, café fraco e doce. Café para todos os gostos, dos oprimidos que buscavam alento, durante todo o dia, junto à minha avó.
Enquanto servia meu café forte e amargo, ela me surpreendeu: você quer o Vento Norte de volta, não é? Pois bem, eu posso consegui-lo para você.
Olhei minha avó, estupefata. Como poderia ela saber de meu namorado? Sim, repetiu ela, eu posso trazê-lo para você. Mas haverá um preço.
Encarei seus olhos negros, pequenos, ladinos. Neles enxerguei que era um preço alto demais a se pagar. Não me atrevi sequer a perguntar à minha avó qual seria o preço. Ali, busquei mitigar o meu amor pelo Vento Norte. Deixei a cama, voltei à vida e, de vez em quando, ao virar uma esquina, sinto seu cheiro.
Sheerazade me disse que talvez eu tenha tido medo à toa. Pode ser que minha avó apenas quisesse me ensinar uma canção encantadora, que chamasse de volta o Vento Norte. O preço seria aprender a canção. Mas eu preferira acreditar na leitura intuitiva que fiz do olhar de minha avó.
Meu namorado, o Vento Norte, nunca mais veio para mim. Ele vem de passagem, às vezes, mas, lépido, não se detém. Pude amar a outros seres capazes de despertar tanto bem-querer como ele. Mas ele foi o primeiro.
Minha avó encantou-se; mas deixou minha mãe para continuar me protegendo.
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