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A via dos namorados

Written By Ana Claudia Gomes on quinta-feira, 11 de setembro de 2014 | 04:13


Se essa rua fosse minha, ah, eu mandava ladrilhar! Com pedrinhas de brilhante, é claro, para ver, para ver o amor passar. Porque eu passo por ela a cada dia útil - se é que algum dia não o é - e o cinza-chumbo abateu-se sobre o meu olhar desde que a vi pela primeira vez.
A Via dos Namorados fica numa cidade industrial. No trecho que percorro, após engolir o almoço, para atender ao apito de uma instituição semi-industrial, um grande galpão de blocos cinzas se impõe, e atrapalha o sol. Na sua margem oposta, cinzentos muros impedem que se vejam possíveis jardins, desejáveis gentis fachadas.
Demorei para ver nela encantos. Percorri-a rabugenta tantas vezes, perguntando-me pelas flores, pelas crianças com bolas e pipas, pelas comadres tricotando no portão.
Aos poucos, comecei a perceber que o galpão bloqueador solar produz também uma imensa sombra, onde os casais, em seus uniformes cinzentos, fazem a sesta com beijos. A sombra, o cinza... Surpreendeu-me a poesia.
Passei a esperar curiosa o momento de fazer a conversão à esquerda, para ver um ou outro casal sentado na calçada, encostado à cinzenta parede; às vezes a moça deitada no colo do moço, às vezes uma verdadeira recíproca.
E a rua cinza passou a me arrancar sorrisos, motivou-me a reduzir a marcha, para imaginar o amor que germina entre os operários. A uniformização e a agonia da arquitetura urbana jamais eliminarão o olhar humano para o que é único, encantador, pensa o meu sorriso de esguelha. Prega o meu iluminismo incorrigível.
A memória faz ecoar uma canção: você que atende ao apito de uma chaminé de fábrica, por que não atende ao grito tão aflito da buzina do meu carro?
Não procurei saber o nome da rua. Na cidade onde envelheço, muitas ruas carecem de gentis nomes e de gentis placas de identificação. Decidi nomeá-la Via dos Namorados, a despeito de ser a designação dos logradouros um atributo da vereança... O nome de uma rua deveria derivar-se de seus melhores encantos, de suas mais ternas paisagens.
Faço votos para que o horário de almoço das organizações industriais e semi-industriais se estenda. Para que haja mais beijos. Marchas mais lentas. Olhares que se aprofundem e encantem as cruas paisagens. Para que se dêem mais colos. Para que a beleza das morenas madeixas, das epidermes-jambo, dos olhos negros se imponha sobre o cinza.
Hoje a minha sesta coincide com os minutos que dura a minha passagem pela Via dos Namorados.
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