Toda cidade tem ou deveria ter seu louco mensageiro. Verdadeiro monumento local. Que ficará agressivo alguma vez, mas aí bastará afastar-se e ele bradará sozinho as suas lucidezes. Que vez ou outra será levado por polícia ou ambulância. Mas em geral dirá o que muitos gostariam de dizer.
Naquela cidade tinha o Pé-de-Alface. Tem mais não. Muita gente ainda lembra.
Ouvi dizer de um louco de mesmo naipe em outra grande cidade. Um que embargava eventos pela emissão de decibeis. Assim embargando diversos eventos. Todos que reunissem mais de dez pessoas e de que ele tivesse conhecimento em tempo de embargar.
Mesmo assim, a gente local era muito acolhedora com o velhinho, como chamaremos doravante. Talvez por não haver crescido mais de um metro. E ainda por cima não haver namorado. E ter corcunda, pernas tortas, grisalhos pixains. As pessoas diziam entender a sua dor.
Cuidemos que haja outros no mundo como ele. Mas não os há em em seu círculo de amizades. Então, o velhinho era muito só.
Assim mesmo, não querendo ninguém a morte, ele aproveitou seu dom de interpretar, e começou a discursar pelas ruas e praças. Falava principalmente contra a corrupção de cada dia e não poupava ninguém. Vestia um indefectível terno e colorida gravata. Gentilezas de um velho alfaiate.
Podia, imagine, abordar um casal de namorados e bradar contra seu agarramento. Renegar as roupas curtas da menina, ou andróginas do menino. Dizer que tal indecência era sinal do fim dos tempos.
Nesse caso, o casal devia seguir andando em silêncio, enquanto o velhinho seguia atrás, vociferava. Pois logo encontraria aberração mais grave.
Discursava horas frente à Câmara e à Prefeitura, chamando de larápios e filhotes da ditadura certos homens que passassem. Não escapava vereador ou prefeito nem qualquer figura pública.
Daí um pessoal da luta anti-manicômios procurou o prefeito, com uma proposta sobre o velhinho. O psiquiatra dos olhos-de-lago fez uma recomendação algo filosófica: Senhor Prefeito, há muita lucidez no velhinho. Mas a cidade se vem tornando incoveniente para ele pois esta cresceu. Migrantes e passantes que temos numerosos, algum pode revidar e machucar o velhinho. Muitos não sabem quem ele é entre nós.
O Prefeito, uma vez já seguido pelo velhinho constrangedores minutos, ouvindo brados de larápio e filhote da ditadura, quis ouvir a proposta.
Veja, dissera uma estagiária da saúde mental: a legislação determina o número máximo de decibeis que uma pessoa pode ouvir continuamente, sem que isso comprometa seu conforto e sua integridade auditiva. O velhinho pode receber a função social de medir os decibeis e embargar os eventos quando o índice-padrão for ultrapassado. Assim, a gente restringe o seu campo de atuação.
O Prefeito deve ter pensado lá com seus botões que valia tentar para poupar de insultos a sua pessoa e outras pessoas.
Então a menina continuara. Como será um único fiscal, vai alcançar um número restrito de desrespeitos à legislação. Tem um aparelhinho portátil que mede os decibeis. Devemos providenciar um para o velhinho.
O Prefeito matutou e mostrou que não era tão simples. Como fazemos com o entorno da casa dele? Qualquer barulhinho, lá vai ele medir os decibeis.
Não, Senhor Prefeito, disse o psicólogo. Ele raramente vai estar em casa, exceto à noite. Vai passar o dia circulando em inumeráveis missões. Consideramos em nossa proposta morar o velhinho em bairro de classe alta, porém num barraco de puxadinhos que vem em mãos de sua família geração a geração. Dizem que lá era quilombo.
No topo de um daqueles privilegiados morros, recebe e processa lixo reciclável, que também coleta. Não por dinheiro, pois beneficiário da previdência. Segue construindo, no barracão, um curioso labirinto onde se expõe a sua criação escultórica com o lixo.
O bairro é silencioso, continuou o psicólogo. Eu cá nunca vi som alto em bairro rico.
É... O Prefeito mastigava a dentadura. Vocês sabem vender bem o peixe. Tenho ainda uma última pergunta: e se alguém que for pego pelo medidor de decibeis do velhinho resolver desobedecer ou revidar?
Bem, Senhor Prefeito, respondeu a coordenadora da equipe. O velhinho é nosso patrimônio. Devemos desenvolver um programa de educação urbana para que a população lide com o velhinho. É preciso ensinar aos velhos e aos jovens que ele nos traz alegria, nos diverte. Joga em nossa cara que não respeitamos nossas próprias leis. O que é uma função indiscutível dos loucos. Produz ainda arte visual e por isso sua casa deveria ser visitada. E inventariada. Classifica, ordena e reaproveita metodicamente o lixo. Poderia ser premiado com o Mérito Ambiental, Senhor Prefeito.
Devemos ensinar aos velhos e aos jovens que, quando abordados pelo velhinho, eles deverão acatar suas ordens de pronto. Deverão baixar os olhos e ouvir o longo discurso. Não deverão desviar a face do dedo-em-riste do velhinho. Deverão dispersar. Logo o velhinho encontrará outra distração. Aí, o pessoal liga o som de novo.
E foi assim que o velhinho fez jus à função pública voluntária de medidor de decibeis e ganhou status de patrimônio cultural daquela cidade. Sua casa foi inventariada e passou a receber visitas à noite. Assim, o velhinho ficava ocupado no horário de maior incidência de decibeis.
Consta que foi chamado diversas vezes para expor em museus e galerias. Caso realmente raríssimo. Um afrodescendente baixinh, com eminente corcunda, dado como louco, e com toda essa cidadania.
Não cheguei a saber por qual nome é conhecido o velhinho. Mas deve ser algo como Pé-de-alface ou Profeta Gentileza. A cidade teve, certamente, inspiração musical. Ou não teria criado solução tão sensível para a convivência com seu simpático velhinho.
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