A nova velha história

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 28 de maio de 2016 | 06:13

Passava das oito da manhã de domingo. Janete dormia até mais tarde, cansada dos filmes de tevê da madrugada. Acordaram-na angustiosas batidas à porta: toc-toc-toc. Era Oswaldo. Janete olhou para ele desanimada, despenteada, com remela. Sujeito nojento. O que poderia querer à sua porta num domingo de manhã? Preciso falar com você, mas não pode ser aqui. Vamos dar uma volta? É sobre a Mariana.
Janete aquiesceu, pouca vontade. Lavou rosto, escovou dentes, tomou gole d'água e saiu. Sentaram em um banco de praça, logo adiante. Fiz uma coisa terrível, disse Oswaldo. Mas fui tentado a não mais poder. Agora a Mariana está sumida e eu, desesperado. Sei que ela vai te procurar. Não veio ainda? Pois é, por isso vim cedo.
O coração de Janete acelerava. O que aconteceu? Você sabe como eu amo a Mariana, disse Oswaldo. Mas ela me tira do sério. Terminou comigo quarta-feira e acha que eu sou de ferro. Chego do trabalho cansado, passo para meu barracão e ela? Sentada no chão de pernas cruzadas, calcinha aparecendo. Saio para trabalhar de manhã e ela? Lavando roupas de camiseta, sem sutiã, aquele céu todo que eu não posso alcançar. Deu sábado à noite, não aguentei mais tanta provocação. Fiquei vendo de longe que ela relava nos caras do forró. Quando voltou para casa, impedi sua passagem entre um muro e uma kombi, com ajuda de um aparelho de treino em artes marciais. Fi-la subir em minha moto. Levei-a para um motel e a tornei minha mulher. Quando ela aparecer, quero que você me ajude. Diga a ela que eu quero, sempre quis, me casar. Que ela é a mulher da minha vida.
Janete tentava nem sequer imaginar a cena. Tinha vontade de transformar-se magicamente num brutamontes e socar a cara daquele animal. Sentia-se tão mulher quanto Mariana, ali, ao aberto daquela praça, perfeitamente vulnerável para tornar-se vítima. Apenas conseguiu sussurrar, mas o tremor da voz, só ela sabia quanta raiva continha, perguntando se ele não tinha ideia de onde andava Mariana.
Mariana era sua colega no secundário, sua melhor amiga. A menina mais bonita do colégio. Às vezes triste, cansada de que todos só vissem a estampa. Gostava de ter em Janete uma confidente, pois ela descera além de sua pele dourada, indígena, olhos puxados, cabelos hiper lisos, para conhecer uma sensibilidade que aos outros desejava representar mais que objeto do desejo.
Janete tremia ao voltar para casa. Olhava disfarçadamente ao redor, pois sabia, Oswaldo certamente vira a aversão em seus olhos. Sentou-se no sofá, petrificada, esperou. Por mais de três horas. Enfim, toc-toc-toc. Mariana ante a porta, altiva. Preciso falar com você. Mas não pode ser aqui. E caminharam até a beira do rio, vez em quando Mariana enxugava uma lágrima.
A descrição dos horrores superou a farta capacidade imaginativa de Janete. Instrumentos pontiagudos tinham girado diante do corpo nu de Mariana. Grossas correntes eram sacudidas a milímetros de sua pele. Depois da inevitável violação, haviam entrado seis colegas de Oswaldo, dos que com ele praticavam lutas e lhe davam cobertura, e procederam a uma geral em Mariana.
Esta parara de chorar durante a narrativa. A lembrança da violência multiplicada parecia tê-la fortalecido. Quero ir à delegacia, você vai comigo? Os desgraçados não deixaram uma marca no meu corpo. Mas eu vou mesmo assim. Tem que haver justiça.
Foram Janete e Mariana, meninas, menores. Um pachorrento delegado as recebeu, gordo, gorduroso, sorriso debochado. Vão lá, recolham o indivíduo e deem nele um corretivo. Basta deixá-lo numa cela coletiva, riu. Mas uma mulher dessas aí? Até eu. Disse, cravando os olhos nos olhos de uma Janete indignada.
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