Home » , , » Alexandria e a escola sem partido

Alexandria e a escola sem partido

Written By Ana Claudia Gomes on sexta-feira, 29 de julho de 2016 | 16:17


Há dias venho lendo fragmentos e opiniões sobre o programa escola sem partido; vendo com simpatia as manifestações críticas sobre as propostas do programa; mas achando que sempre falamos àqueles que já nos ouvem, acrescentando mais do mesmo. E que entre os diversos atores direta ou indiretamente interessados no tema, há mesmo é um diálogo de surdos. Uma pena deixarmos assim, pois os surdos dialogam.
Pensava então nada dizer, quando vi o longa-metragem Agora (Espanha, 2009, Alejandro Amenábar), intitulado Alexandria no Brasil.
O filme não se diferencia propriamente por sua escolha estética, mas pelo tema e principalmente por dar protagonismo a uma mulher filósofa e matemática, em torno da qual se desenvolve a trama.
Hipátia, a filósofa, foi professora em uma das escolas livres da Alexandria antiga, após ter o apoio do pai para estudar. Ela realizou uma obra importante. E pequena. Como quase sempre acontece na formação do acervo de conhecimento sistemático humano. Pois cada pessoa, em sua curta vida, raramente pode acrescentar mais que uma hipótese, um conceito, uma teoria. E tudo para ser posteriormente revisto por novos estudos. É vocação do conhecimento ser questionado e até superado.
Alexandria foi, durante séculos, uma cidade devotada ao conhecimento. Teve várias bibliotecas, muitas delas ligadas a escolas semelhantes às universidades atuais. E as melhores cabeças do mundo antigo podiam nela passar temporadas ou mesmo se radicar, para manter ativos a pesquisa e o ensino. Sua liberdade para discutir as diversas tradições do saber e para inovar também fez dela um alvo de grandes vagas culturais. Há desse modo consenso que duas iniciativas de destruição das bibliotecas e escolas, e mesmo de toda a cidade, foram protagonizadas por cristãos em emergência, e por muçulmanos, depois, em definitivo.
Mas muitos estudiosos dessas mesmas confissões, cristã e muçulmana, puderam desfrutar da liberdade de pensamento em Alexandria, onde as tradições clássicas tinham grande influência.
Alexandria, cidade africana, tão cosmopolita era que um filme dos tempos atuais sequer peca ao nos fazer parecer uma cidade europeia. Amenábar faz um filme mediano, de estética legível tanto a aficcionados das telas quanto a pessoas em busca de entretenimento. Mas atribuí-lhe um sentido extra porque ali refleti mais uma vez sobre a liberdade de pesquisa e ensino, um valor liberal, e para mim muito caro.
Então ganhei ânimo e dei-me a explorar o sítio eletrônico da escola sem partido. Desnecessário dizer que o nome é muito inteligente. Como deve ser todo nome de fantasia.
Os textos conceituais são muito simples e como que reiteram algumas coisas em que todos acreditamos ou queremos acreditar. Que não é boa nenhuma forma de doutrinação, a menos que consentida pelos doutrinandos. Pois há muitos que preferem conhecer e seguir um conjunto fechado de crenças e regras para se sentir mais seguros no mundo. Eu compreendo isso, embora prefira duvidar e transitar. Não ter certeza dói. Por isso tantos preferem ter certeza.
Nos exemplos e depoimentos dos signatários do projeto pode-se observar não ser qualquer tipo de doutrinação que está sendo combatido pelo programa e seus adeptos. Entre as principais preocupações da escola sem partido estão a ideologia segundo a qual a experiência de gênero é variável na espécie humana, e portanto deveria haver liberdade de expressar as escolhas de gênero; e uma grande preocupação com as ideologias que defendem mudanças radicais no mundo, especialmente o marxismo, tão influente nos processos de construção do conhecimento e no ensino. Assim como a ideologia liberal, que indubitavelmente informa o programa escola sem partido.
E é pelo fato de que não pode haver vida humana com neutralidade e sem ideologia que o programa escola sem partido não pode ser defendido por quem dedique a vida ao conhecimento. O programa é a propaganda de uma ideologia que se quer tornar hegemônica, como vem se tornando novamente no ocidente, pelo menos desde 1990. Toda ideologia deseja ser confundida com a verdade. Mas a verdade, ainda não houve quem a encontrasse.
Eu, pelo contrário, gostaria de defender que toda escola fosse uma pequena Alexandria, onde gente de toda tradição religiosa, ideológica, qualquer que seja, pudesse conversar. Que as escolhas pessoais e familiares continuassem sendo feitas privadamente, mas as escolas fossem como ágoras, onde se pudesse debater e aprender junto. Onde as pessoas pudessem migrar de um a outro campo do conhecimento, esmerilar suas crenças no contato com outras, e que o projeto de nunca parar de buscar conhecimento permanecesse aceso como fátuo perpétuo.
Véi. Escola tem de ter tudo quanto é partido, tudo que é religião, time de futebol a rodo, estilos os mais diversos, tudo o que é jeito de gente ser. 
Aprender a conviver com o pensamento diferente, deixá-lo proliferar, empoderar-se, decair, sumir, ressuscitar deve constituir a alma mesma da escola.
Na escola, todo professor, todo manual, compêndio ou discurso estará atravessado por crenças, sendo a neutralidade tanto impossível quanto indesejável.
A educação, sempre que muda o regime econômico, ou político, ou religioso, é arena de disputas. Quem vence quer ensinar conforme seus preceitos. E por isso a escola sem partido não é a única polêmica a incidir sobre a educação nesse momento. A todos os debates seria melhor se nos debruçássemos com mais calma, aproveitando para uma autocrítica constante do trabalho de conhecer e ensinar. E sempre questionando a propaganda, suas frases feitas, suas estratégias insidiosas, estimulando o pensar.
E que muitas Hipátias possam ter vez e voz em escolas com partidos, com gêneros, com religiões e com ideologias.

Fonte da imagem: https://probaway.wordpress.com/2013/07/09/philosophers-squared-hypatia-of-alexandria/ (acesso em 31/07/16)
SHARE

3 comentários :

  1. Ótimo artigo. A escola deve mesmo ser lugar de muitos debates, religiões e partidos e espaço para críticas contantes.

    ResponderExcluir
  2. Ótimo artigo. A escola deve mesmo ser lugar de muitos debates, religiões e partidos e espaço para críticas contantes.

    ResponderExcluir
  3. Maravilhoso seu ponto de vista, de todas as coisas que li até agora sobre escola sem partido, seu texto é o melhor .

    ResponderExcluir