Cineclube

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 1 de janeiro de 2017 | 06:22

Carolina não podia ir ao cinema. Era crente. Mas tinha uma fascinação pelo brilho das telas. O Sítio do Pica-pau Amarelo. O beijo de novela. A Lagoa Azul. Flashes que via pela janela da vizinha ou a caminho da escola.
Cresceu, conquistou um televisor portátil preto-e-branco. Para ver jornal. Como justificou a seus pais ter tanto lutado por este presente de quinze anos.
Jornal né. Logo fez jus também aos videoclipes. Às minisséries. À transgressão das madrugadas. Arrastar o televisor em sua mesinha com rodas da sala até o quarto e vice-versa. Sem barulho. Sempre uma aventura. Mas cinema não.
Até que uma dessas surpresas da vida. O professor de educação física a chamou pra montar um cineclube. Carolina não entendeu bem por que foi selecionada sem processo seletivo. Mas se era assim um presente do céu...
Muitas providências administrativas. O auditório do Sesc emprestado. A divulgação. Pixote. Sala cheia. Carolina ficou vidrada. 
Fernanda Montenegro rainha catando feijão quando o pai de Carolina entrou na sala. Terror. Ele andando no escuro à cata da filha que trêmula se levantou. Andou em sua direção. Não sem antes avisar ao professor. Sujou.
Deu graças porque o pai não era de dar barraco em público. Foi sair ao corredor que começou o sermão. Não criei filha puta. Essa pornografia. Depois de tudo o que ensinei. Você quer ir pra o inferno. Você está proibida.
Carolina calada. Trinta quilômetros até à casa. Segunda-feira procurou o professor. Apanhei mas não desisto. Professor sorriu com cara de liberdade. Vamos projetar no leprosário.
Carolina que será isso. Lera da lepra na Bíblia. Então deduziu grosso modo.
Quinta-feira encontrou o professor com as parafernálias. Quinze quilômetros, leprosário. Que visão. Buracos à altura dos narizes. Mutilações. Tristezas. Cheiros de desesperar. Cadeiras de rodas empurradas pelas irmãs até o refeitório.
Carolina não assistiu ao filme. Não guardou sequer o nome. O filme da vida se lhe bulia à flor da pele. Depois seguiu pela mão do cinema.
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