Riobalda

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 25 de julho de 2017 | 14:54

Descia lentamente pelo corredor esquerdo do auditório enquanto o público extenso aplaudia em pé. O curta fora então premiado e exibido. Já quase no palco, em seus modestos e indefectíveis tênis, pantalona e malha larga. ouviu um comentário surdo. Estudei com ela. Parecia uma ostra.
De fato. Já no palco, enquanto falavam os anfitriões e parceiros, para manter-se calma, ficou olhando por trás dos óculos a antiga colega de academia. Lembrava seu próprio insistente silêncio numa faculdade onde a expressão era a razão de ser. E em suas raras manifestações, a escuta e o apreço dos demais.
Fora considerado óbvio que seguisse direto da graduação para o mestrado, exceto por ela mesma. Nem o concluíra, foi convidada para o doutorado, ocasião em que já era conhecida por seus textos e vídeos. O orientador disse da necessidade de estudar um tempo fora do país, o que seria providenciado através de agência pública.
Mas foi aí que o mundo caiu. Davam-lhe agora o microfone para que algo falasse sobre sua extensa e irregular produção. Não que tivessem citado a irregularidade. Pediam que falasse sobre sua produção em vídeo. Sobre seu estilo, que tinha como um pilar a tematização da vida pessoal. Sobre sua simultânea atividade em cinema e literatura. E muito discretamente perguntaram sobre sua longa ausência nos espaços de produção e debate.
Riu-se timidamente. Falou um pouco sobre a privatização do mundo e sobre poder ser o privado objeto de instigante debate público. Assim explicando a quem tinha ouvidos o por quê de ter seus filhos entre as pessoas preferidas de suas câmeras. Sobre o ter sempre um flerte ou namorado ou marido. Ou namoradas. Igualmente diante das câmeras. Disse jamais ter realmente optado entre a literatura e o cinema porque acreditava poder frequentar a ambos. Mas nada disse sobre ter ficado dez anos desaparecida do mètier. Exceto raras vezes, quando aceitava convites e abusava do álcool e da generosidade dos amigos, nunca lhe faltando alguns deles.
Recebeu simbolicamente o prêmio do festival. Intimamente comemorava que fosse tanto dinheiro, pois há tempos não tinha recursos sequer para a produção. E dessa vez não demoliu os cânones da mostra, como o fizera cerca de quinze anos antes, mesmo tendo sido considerado o seu vídeo a melhor realização pelo júri.
Agora então era preciso participar do coquetel, o que, para ela, era dos mais terríveis sacrifícios. Muito pouca conversa achava interessante. Mas apreciava a comida e a bebida, permanecendo até fechar o boteco. 
E para disfarçar seu medo de gente. Essa mesma sobre quem fazia cenas e letras. Olhava a tudo intensamente, enquanto fingia ouvir o que diziam os comensais. Na verdade, costumava ouvir por alto e só fixava mesmo as últimas palavras dos interlocutores. Aquelas que precediam a uma pergunta tal como não é? Ou. O que você acha?
Não raro, Riobalda dava mostras de não ter ouvido nada. Às vezes porque falhava em fingir. Outras vezes porque fazia mesmo questão de se chocar ao falante.
E neste coquetel em particular, enquanto fingia ouvir a bajulação ou mesmo o genuíno interesse, ela via em flashes suas memórias. E intimamente planejava como responder à pergunta por que você passou mais de uma década sem filmes e sem livros.
Agora poderia responder se quisesse. Foi muito tempo de análise. De adicionar ansiolíticos e antidepressivos ao álcool. Além de analgésicos e até fitoterápicos e homeopáticos. Pois era a própria contradição em termos. Podia admitir que o mundo caíra em dois grandes blocos, bem anos atrás. 
Um bloco fora a vida acadêmica. Disse não ao doutorado internacional porque não queria maneira alguma escrever sobre cinema. Só soube a posteriori que queria escrever e fazer cinema sobre a vida. Ou: havendo que ter gaveta, ao menos que fosse gaveta larga.
Mas enquanto não sabia, tentou ganhar a vida como professora de arte. O que não dava, pois também não queria ensinar a classes de pessoas. Não acreditava em classes. Daí que tenha sido considerada inapta para a função de professora de arte em classes. 
Quedou depois, como é sabido, muitos anos sem trabalho, exercendo funções dispensáveis nas escolas, sem filmes, sem escritos. É que tinha caído também o outro bloco. Seu casamento, o segundo, com um homem a quem muito amava.
O romance começou quando ele, bem mais jovem que ela, ainda se graduava.  E por ele ela foi expulsa de seu primeiro matrimônio, com malas jogadas à rua e insultos de adúltera pra baixo.
Cursando história, e ao conviver com ela, migrou imediatamente para o cinema. Literatura não, nem cogitou. Sem tanto talento, porém com dignidade e estudos apropriados, ele topara fazer a dissertação, a tese, o concurso, escrever e falar sobre cinema. 
E não entendia como podia Riobalda continuar apagada de porres e de remédios. Como ela podia ter desistido de ganhar dinheiro. Como podia descumprir seus compromissos e jogar fora todas as oportunidades.
Estabelecido, o então marido de Riobalda deixou o casamento e a cidade, levando o filho do casal. Não porque quisesse, mas porque sabia não ter a mulher um puto e nem energia suficiente para sequer cozinhar. O primeiro marido também assumira o primogênito. Sendo ambos os ex-maridos algo como eternos apaixonados, sempre preocupados em que se reerguesse e a socorrendo nas frequentes emergências financeiras.
Dessa vez, Riobalda parece que morreu. Não de todo pois passou a frequentar sites de relacionamento e ultimamente aderira ao boom dos aplicativos. Era quase que uma treta por noite, e por vezes uns namoros de dois, três meses, sempre com homens casados. Sempre os que ficassem bem nas telas e trepassem gostoso. De forma que acervo tinha, para fazer muitos filmes. E contos e romances, quiçá novelas.
Pois de uns tempos pra cá dera pra escrever também. Aderira a pequenos cadernos coloridos e escrevia principalmente quando estava em salas de espera. O que era frequente. E também quando parecia não caber em sua própria pele, principiando a explodir. Daí escrevia e pensava está escrito. Depois eu vejo o que fazer.
Riu-se enquanto comia uns deliciosos e desconhecidos tomates no coquetel. É que lembrou de ter vivido acampada numa chácara durante longo tempo, trocando as pessoas pelas plantas. Tendo a custo recebido a visita de um amigo que conceituou o lugar. A privada da sua vida privada. Dissera isso após observar a reutilização, por Riobalda, de louças sanitárias como recipientes para as plantas. 
Então devagar é que pôde recomeçar o prazer da síntese em escritos e em filmes. Acreditava dever o redespertar à psicologia, à homeopatia e aos amigos.
Disso tudo ela podia rir agora. Mas não tivera ainda a graça de uma síntese que pudesse ser dita em microfone ou em coquetel, como resposta à citada e recorrente pergunta sobre seu sumiço. Pois ainda não sabia como vencer o gosto em preferencialmente ver o mundo através das câmeras ou das penas. Ao invés de efetivamente se misturar ao mundo ou às pessoas, assim continuando a vê-los. Ou até melhor.
Mas sem nenhum anteparo, sem mediação, continuava difícil para Riobalda. Logo ela teria exagerado no uísque. Podendo dormir no divã no hall, ou mesmo sentada na privada, como tantas vezes acontecera.
Por enquanto seguia rindo de si mesma ao lembrar os motivos primevos de seu isolamento. Os motivos de primeira infância ou freudianos. O ser negra em mundo racista e ainda hoje manter os cabelos alisados, presos para trás com passador e buchinha. O chamar-se Riobalda, Deus meu. Se ainda fosse por qualquer leitura dos pais. Não não. Ouviram no rádio sobre João Guimarães Rosa e, nascida a filha, não podendo se chamar Riobaldo, então foi isso.
Riobalda tonteou e caiu. Tomara dois ansiolíticos com o uísque. Antes de apagar riu-se de novo. Para que tanta pergunta sem resposta? Vou simplesmente dizer que eu estive profundamente mergulhada em pesquisas e por isso tenho bastante material. O que é aliás é vero.

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