“Tive três filhos que agora continuam, tenho os descendentes dos meus
filhos e os futuros descendentes para continuar a obra que eu iniciei de
tolerância, e respeito mútuo e amor universal” (Dona Lídia Martins, matriarca
da Família Souza, entrevista de junho/2019, gravada em vídeo, anexa, 1m40).
A Vila Teixeira Soares se forma no
início do século XX, pela matriarca negra Elisa, nascida sob a Lei do Ventre
Livre, casada com Petronillo, que foi pessoa escravizada até a promulgação da
Lei Áurea em 1888. Ambos se casaram e migraram do interior do estado de Minas
Gerais, cidade de Além Paraíba, para Belo Horizonte, em busca de melhores
condições de sobrevivência. Instalaram-se no bairro de Santa Tereza, antes de
1915, ano em que nasceu Odete Souza, filha do casal registrada em cartório já
na capital[1].
A história da família Souza, da comunidade de
Teixeira Soares, localizada no Bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, pode
ser começada a narrar pelo próprio movimento da família ao pesquisá-la.
Logo que tomou contato com a informação de que
poderia, eventualmente, ser reconhecida como uma comunidade remanescente
quilombola em contexto urbano e patrimônio cultural, por estar secularmente
radicada em seu território e perpetuando práticas de matriz africana, uma
liderança emergente da família, a Senhora Gláucia Vieira, sob orientação,
realizou com familiares o diagrama de uma árvore genealógica, chegando aos
ancestrais mais antigos de que se recordavam, o casal Petronillo e Eliza de
Souza, bisavós da citada liderança.
Representação diagramática da genealogia recente da família Souza, elaborada por membros atuais da família, 2019.
A partir desta iniciativa, e da informação da atual
matriarca da família, Dona Lídia Martins, de que Petronillo e Eliza migraram
para Belo Horizonte vindos de São José de Além Paraíba, Gláucia e outras
mulheres da família decidiram empreender uma viagem em busca de documentos
sobre seus ancestrais, especialmente que comprovassem sua experiência de
escravidão, que sobrevivera na memória familiar[2].
Assim, na Paróquia de São José de Além Paraíba,
pertencente à Diocese de Leopoldina, obtiveram ajuda para localizar, em antigos
livros de assentamentos de batismos e casamentos, certidões de inteiro teor com
o seguinte conteúdo:
Aos quinze de junho de mil oitocentos e setenta
e nove baptisei solenemente a Petronillo, nascido a trinta e um de maio pp,
filho natural de Joanna, escrava de Joaquim Luiz de Souza Breves, foram
padrinhos Miguel e Possidônia, escravos do mesmo senhor: dos que, para constar,
fiz este assento que assignei. O vigário Conego Francisco Bernardino de Souza (Livro de
Assentamento de Batismos n. 05B, fls. 56).
Da certidão, depreendem-se alguns fenômenos
sobejamente conhecidos das relações sociais no âmbito da escravização, como o
desconhecimento do pai, sendo Petronillo designado como filho “natural” de sua
mãe, e a ausência de sobrenome, sendo ordinariamente dado o sobrenome do senhor
dos escravizados, como posteriormente aconteceu com Petronillo.
O seguinte documento encontrado por Gláucia e suas
familiares na mesma Paróquia foi o de casamento de Petronillo e Eliza, nos
seguintes termos:
As doze horas do dia oito de setembro de mil
novecentos e dois, nesta Matriz de São José de Além Parahyba em minha presença
e das testemunhas abaixo nomeadas, compareceram os contrahentes Petronillo de
Sousa e Elisa da Conceição, solteiros, elle filho de Joanna, nascido e
baptisado nesta freguesia, reside nesta cidade, de vinte e três nascido, Ella
filha de Cezaria da Conceição, nascida e baptisada na Freguesia de Angustura,
reside na dita Freguesia, em Volta Grande, de quinze nascida; os quais
contrahentes, em tudo habilitados e sem impedimentos algum, se receberam com
palavras de presente por marido e mulher sendo testemunhas presentes Augusto
Leite Leonel, official de justiça e sua mulher Angelica de Barros Leonel,
pessoas de mais conhecidas, nesta cidade. Para constar lavrei este termo.
Vigário Carloto Fernandes da Silva (Livro
de Assentamentos de Casamentos n. 05B, fls. 56).[3]
Não foi possível encontrar documento que aluda ao
nascimento de Eliza, podendo nós sabermos que havia nascido provavelmente em
1887[4] e que seu nome está
acompanhado de alusão a uma santa de devoção católica, adotando Souza,
posteriormente, de seu marido, que o adquirira de seu senhor.
O município de São José de Além Paraíba, atual Além
Paraíba, constituiu, no século XIX, uma área de produção cafeeira, que
utilizava mão de obra eminentemente escrava, como foi o caso do povoado de
Angustura, onde nasceu Elisa da Conceição. As pesquisadoras leigas da Família
Souza leram sobre o senhor de escravos que fora dono de seu ancestral
Petronillo, aprendendo que se tratara de um poderoso traficante de escravos,
dono de milhares, mesmo quando o tráfico estava proibido.
Petronillo e Eliza de Souza tiveram uma filha,
Maria de Souza, nascida em 1907, na mesma cidade de sua genitora. Logo a
seguir, a pequena família migrou, com outros familiares, para Belo Horizonte,
onde Maria de Souza, casada com José de Souza Martins, deu à luz a atual
matriarca da família, Lídia Martins.
A família vivia de produção agrícola como era a
característica do bairro de Santa Tereza, uma das regiões responsáveis pelo
abastecimento da nova capital, inaugurada então há pouco mais de uma década.
Essa região fazia parte das áreas suburbanas, no contexto de planificação da
nova capital, e, inicialmente, esperou-se que acolhesse chácaras e moradias de
trabalhadores. Porém, fora da área planejada, o crescimento foi grande,
desordenado, fora das diretrizes pensadas para cada região, e chegaram a ser
formados os primeiros aglomerados ou favelas, como, no caso de Santa Tereza,
foi o Alto da Estação (BARROS, 2016, p. 44).
O terreno em que os
Souza construíram sua morada fazia parte da Ex-Colônia Américo Werneck, nome
dado à atual Santa Tereza durante o contexto de inauguração da nova capital, e
foi adquirido em 1923 dos proprietários Gabriel de Oliveira Santos e sua esposa
Maria V. de Oliveira Santos, conforme contrato de compra e venda datado de 22
de novembro de 1923 que foi levado a registro no cartório Francisco Casimiro
Martins Ferraz (certidão anexa de 8 de maio de 1973).
A produção da família tinha escoamento através das
feiras da Rua Salinas, onde se concentrava o comércio destinado aos cidadãos belorizontinos
dos arredores.
A inserção da família na capital não passa somente
pelo trabalho agrícola; também é importante ressaltar que, segundo relatos dos
seus descendentes, Petronillo de Souza atuou como carpinteiro na construção da
Igreja da Boa Viagem, a então Matriz, dedicada à patrona da cidade. Contam seus
netos que, enquanto o ancestral trabalhava as portadas da Matriz, estes jovens
atravessavam o bairro para levar-lhe o almoço.
Dona Lídia, a mais velha Souza viva, conta que as
ruas de Santa Tereza não tinham pavimentação e as construções adotavam as
tecnologias construtivas de adobe e pau-a-pique. Dona Eliza teria narrado à
neta Lídia que a casa onde viviam era conhecida como “Asas de Urubu”, em alusão
às duas águas de seu telhado, como cria a ancestral, mas também a seus
habitantes negros, como sabem seus descendentes atualmente.
As narrativas também apontam para uma intenção de
“embranquecimento” da família, lembrando o discurso de uma tia-avó de Glaucia e
irmãos, defendendo que deveria haver uma “melhoria” da raça. Essa proposta
chegou a constar das mais altas rodas da intelectualidade brasileira, que, no
século XIX, discutiam qual política racial deveria presidir a nação brasileira.
Os relatos orais, ainda preliminares, não permitem
avançar sobre a experiência da família Souza para muito antes dos anos 1960.
Por esta época, conta o Sr. Antônio Lopes Filho, também morador da Vila
Teixeira Soares, que o território no entorno da atual Rua Teixeira Soares era
constituído por duas chácaras, uma de sua própria família, outra da família
Souza, então liderada pelo casal Maria Martins e José de Souza Martins, o Seu
Zezito. Foi nesta década que a família Souza decidiu vender a “parte de cima”
de sua chácara para o Clube Oásis, ainda instalado no local. A família
concentrou-se, então, na “parte de baixo” do terreno, onde empreendia um
aviário de galináceos, cuja produção era escoada até para o Rio Janeiro. A
atividade era desenvolvida num galpão de proporções expressivas.
A família do Sr. Antônio Lopes Filho também
desenvolvia sua própria criação de animais, em diversidade de espécies.
Em 1964, as duas famílias decidiram buscar apoio da
Prefeitura Municipal para abrir uma rua no território, visto que a vizinhança
circulava nos terrenos circunvizinhos e em becos, para ter acesso às vias
públicas. Na verdade, abriu-se uma extensão da Rua Teixeira Soares,
preexistente. Assim, a Prefeitura cedeu uma máquina e as famílias custearam o
combustível para abertura da via.
Contam Dona Nonuca, também vizinha na Vila Teixeira
Soares e Gláucia Vieira que “a rua era uma festa”, domínio principalmente das
crianças, que ali desenvolviam seus folguedos, a finca, a rouba-bandeira e a
bente-altas. A rua não tinha pavimentação ou iluminação, conquistas
posteriores, e também foi pensada pelas famílias como um benefício para o
recente vizinho, o Clube Oásis.
Nas décadas seguintes, com a morte da mãe do Sr.
Antônio Lopes Filho, e estando sua propriedade registrada em cartório já
parcelada entre seus herdeiros, estes optaram por vender vários terrenos, que
abrigam prédios residenciais na rua. A família Souza, por sua vez, manteve
relativamente íntegro o território de sua antiga chácara, multiplicando as
edificações familiares.
Com relação à preservação de tradições e marcas da
trajetória da família em seu território, hoje ainda é possível observar tais
marcas no traçado do terreno deixado sem construção, onde se localizavam as
plantações e a criação dos animais, por exemplo[5].
Ainda uma outra marca, esta mais recente, é quando
ocorre a construção de um quarto para alojar os ícones que dão suporte à
prática da Umbanda, realizada por Dona Lídia Martins, após ser iniciada na Casa
Centro Espírita Pai Joaquim de Aruanda, por Mãe Maria e Pai Nestor, ambos
mestres da cultura afrodescente em Belo Horizonte.
Dona Lídia Martins conta ter se convertido à
Umbanda após ter sido admoestada por um sacerdote católico, que a teria
rotulado como “macumbeira”. Em contato com sacerdotes de religiões de matriz
africana, ela foi recebida como pessoa dotada de potencial espiritual peculiar,
e iniciada.
Atualmente a família é caracterizada por uma
diversidade religiosa que inclui devotos de religiões de matriz africana,
kardecistas, católicos em sua grande maioria, evangélicos e ateus. Entretanto,
a maioria dos familiares se reúne para as duas grandes manifestações que
caracterizam o grupo, a festa junina e a tradicional festa de Cosme Damião,
devoção comum em religiões de matriz africana.
A querela sobre a terra – sumário do argumento
jurídico
O terreno em que os ancestrais
Petronillo e Eliza construíram sua morada foi adquirido em 1923 dos
proprietários Gabriel de Oliveira Santos e sua esposa Maria V. de Oliveira
Santos, conforme contrato de compra e venda datado de 22 de novembro de 1923,
que foi levado a registro no cartório Francisco Casimiro Martins Ferraz
(certidão anexa de 8 de maio de 1973).
O Sr. Gabriel de Oliveira Santos, por
sua vez, comprou o terreno do Sr. Honório Coelho, conforme título público de
contrato de compra e venda datado de 10 de fevereiro de 1921 e registrado no
mesmo cartório (certidão anexa de 9 de maio de 1973).
O Sr. Honório Coelho havia adquirido o
imóvel das mãos do Sr. Arthur Ramos e sua esposa Anna Leonor Nogueira por meio
de contrato particular de compra e venda datado em 30 de dezembro de 1920 e
também registrado no cartório Francisco Casimiro Martins Ferraz, certidão anexa
de 7 de junho de 1966. Foram justamente os herdeiros do Sr. Arthur Ramos que
ajuizaram em 1970 a ação demarcatória que hoje ameaça a Vila Teixeira Soares.
Acrescente-se que as famílias ameaçadas de despejo pagam IPTU ao município
desde o ano de 1955!
Observe-se que a ação de despejo beneficia herdeiros que jamais exerceram posse do imóvel, em um processo no qual as famílias atuais sequer puderam se defender, pois não fizeram parte da ação. Importante atentar que a ação demarcatória na qual foi determinado o desalojamento da Vila foi ajuizada somente em 1970, contra vários réus, incluindo o Clube Oásis, ou seja, mesmo se o título de compra e venda do imóvel fosse irregular, muito tempo antes do ajuizamento da referida ação demarcatória já estava configurado em favor das famílias da Vila Teixeira Soares o direito à usucapião.
A área a ser desalojada na fração onde
se encontra a Vila Teixeira Soares também não foi devidamente demarcada por
perícia. Em função disso e outros argumentos, a Defensoria Pública de Direitos
Humanos protocolou pedido de suspensão da ordem de despejo que não foi nem
conhecido pelo juiz da execução que está determinado em fazer cumprir a ordem
ilegal e ilegítima. A mesma Defensoria também entrou perante a Prefeitura
Municipal com o requerimento previsto na Lei nº. 13.465/2017, denominado REURB
- S, com a finalidade de garantir o direito das famílias à regularização
fundiária plena e à segurança jurídica da posse. O despejo jamais poderia ser
cumprido antes de analisado o mencionado pedido administrativo de REURB - S.
Apesar de informado disso o juiz dr. Fernando Lamego manteve a validade da
ordem de retirada forçada das famílias.
[1] Ver nos anexos certidões de nascimento
recuperadas pela família.
[2] Registros em vídeo da viagem fazem parte
desta documentação.
[3][3] Ao emitir as certidões de inteiro teor, a Paróquia repetiu os
números e folhas dos livros consultados, como se pode conferir nos fac-símiles
anexos, do que a família já solicitou a correção.
[4] A matriarca Dona Lídia Martins dissera à sua
neta Gláucia que Eliza “nasceu do ventre livre”, o que se confirma
considerando-se a data aproximada de seu nascimento e a de promulgação da Lei,
1871.
[5] Sobre a forma de ocupação do terreno,
acompanhará esta documentação, em seus anexos, croqui de localização.
0 comentários :
Postar um comentário