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Estudos em casa na pandemia

Written By Ana Claudia Gomes on sexta-feira, 8 de maio de 2020 | 12:07


A continuidade dos estudos em casa durante a pandemia da Covid-19 é um tema polêmico entre gestores da educação, educadores e comunidades escolares no Brasil atual. As redes privadas a praticam em larga escala, muitas vezes enlouquecendo os familiares dos estudantes, devido a uma unânime obsessão conteudista da escola brasileira. Já nas redes públicas, o movimento é tímido e sofre fortes resistências dos especialistas e dos educadores, enquanto as gestões tentam induzi-la.
Minha perspectiva é que, durante esse episódio duro mas não inédito na história da humanidade, os estudos em casa vão ganhar campo na sociedade brasileira. Isso porque as modalidades da pandemia num país continental demonstram que haverá surtos localizados e até necessidade de lock downs, com regiões mais e menos atingidas, e que o processo pode durar anos.
Há grandes obstáculos a que os estudantes de escolas públicas recebam orientações de estudos em casa. A desigualdade social é provavelmente o maior e aponta que cerca de 40% da população não teria acesso a meios digitais para receber orientações a distância, além de que os domicílios são muito pouco adaptáveis a boas condições de estudos e os familiares raramente estão preparados para ajudar. Outro obstáculo é a formação dos professores, visto que a própria presença física das tecnologias nas escolas é apenas incipiente. Projetores e poucos computadores são utilizados nas escolas, além de que os aparelhos móveis têm seu uso bastante combatido no cotidiano escolar.
Apesar disso, creio que a educação pública deveria enfrentar esse debate, antes que seja levada na esteira dos interesses privados no setor da educação por tecnologias.
Em primeiro lugar, a gestão do tempo na pandemia não deveria ser "industrial", como ocorre em geral nas escolas, com uma imposição massificante de conteúdos, especialmente na forma de longos textos e concentrada na fala do professor. A qualidade da interação, o enfrentamento dos obstáculos em relação aos meios tecnológicos, a aposta na afetividade e uma relação mais personificada com os estudantes poderiam ser princípios.
Domenico De Masi tratou disso com relação à Itália. Ele sugeriu, por exemplo, que a educação escolar aproveitasse a ocasião para aceder à vida cotidiana dos estudantes em casa. O que os estudantes fazem em casa envolve saberes que podem ser conectados à educação escolar. Um exemplo do filósofo foi a alimentação. Sugerir aos estudantes que ajudem seu familiares na preparação das refeições e escrevam receitas. E como é hábito na educação pensar por meio de disciplinas, aqui temos língua materna, ciências, matemática, geografia, história, artes...
Eu diria que a escrita das receitas pode ser orientada, conforme o gênero textual correspondente, e depois corrigida pelos professores. Os professores deveriam, não se preocupar logo em passar ao próximo passo, mas analisar as receitas do ponto-de-vista da qualidade da alimentação. Sugerir enriquecimento e diversidade das refeições com base em alimentos de época, que são mais baratos. Escolher receitas saudáveis e saborosas, na produção dos próprios estudantes, e sugeri-las aos demais.
Só a alimentação é uma longa unidade. Sabemos que a fome grassa no país. Podemos ser simples, escolhendo por exemplo variados modos de fazer arroz, e ensinando a reduzir a gordura e o sal, além de tornar o arroz uma festa, acrescentando legumes, cozinhando com suã, e assim sucessivamente.
Importante reforçar o arroz-com-feijão, que é a base da alimentação brasileira. Um feijão cozido com linguiça ou carnes próprias para cozinhar, algumas mais acessíveis à economia popular. Um baião-de-dois, com uma couve muito presente nas hortas... Baião-de-dois é do Nordeste, mas há comidas tropeiras em todo o Brasil, o que evidencia a geografia.
Eu não quereria sair do tema da alimentação, mas orientar a feitura de hortas seria uma unidade de estudos irresistível. Hortas podem ser feitas em quintais, mas também em pequenos espaços, utilizando materiais descartáveis, como as garrafas de plástico. Podem ser feitas nos muros, com ajuda de madeiras que estejam ociosas nas comunidades. Cuidar de plantas envolve influências culturais, e aqui se pode lembrar da necessidade de ensinar matrizes afro-indígenas, conforme determinado pela legislação educacional brasileira. Uma perspectiva mais ecológica aqui também se pode fazer presente.
Da mesma forma, os animais domésticos podem ser pontos-de-partida. Quais os estudantes têm? Cachorros, gatos, galinhas, talvez passarinhos presos (infelizmente). Quem cuida e como cuida? Como alimentar, imunizar, harmonizar com hábitos de higiene?
Uma unidade de estudos de gênero poderia partir do estímulo a que todos, garotos e garotas, tivessem trabalhos domésticos sob sua responsabilidade e deles fizessem relatos. Posso imaginar o quanto mais saberiam de seus estudantes os professores...
Agora é maio e um cartão para as mães (o que inclui avós, tias, madrastas, mulheres que cuidam dos estudantes) me parece interessante atividade. Muitos professores saberiam orientar dobraduras e creio que alguns até poderiam ensinar como fazer tintas com terra... Haverá inúmeras datas para fazer cartões, cartazes e faixas durante a pandemia.
Fazer máscaras de proteção em casa também urge nesse momento. Muitas podem ser feitas apenas com cortes de retalhos e podem gerar renda no seio das famílias. Personalizar máscaras pode ser uma interessante ocasião de autoexpressão pelos estudantes.
Quase todas as casas ou comunidades podem ser fotografadas com cuidados estéticos e éticos. Uma sugestão de que os estudantes façam fotografias de si, de objetos, como brinquedos preferidos, de paisagens, de recantos de suas casas poderia gerar interessantes exposições.
Mas como fazer com os meios? Creio que na atual conjuntura do Brasil, a educação pública poderia operar apenas com Whatsapp, que é bastante universal. Um grupo do aplicativo formado com uma turma, os estudantes e seus familiares, no qual apenas o professor pudesse postar mensagens, funcionando como um mural. 
Os professores podem perfeitamente evitar aulas próprias em vídeo, pois isso exige uma preparação. Seria melhor enviar pequenas orientações com base em conteúdo já pronto na internet. Um filme curto, uma música, um poema, uma oficina tipo tutorial sobre como fazer uma máscara, uma horta, um bolo, etc. Os estudantes poderiam enviar seus relatos diretamente ao professor, em áudio, vídeo, fotografias ou por escrito.
Mas o que fazer pelos professores que têm 600 alunos ou mais, como é o caso daqueles que ensinam adolescentes e jovens? A governante da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, está desenvolvendo uma experiência criativa, a meu ver. Os estudantes que têm condições de permanecer em casa e estudar por meio de tecnologias o fazem. Os que não têm condições vão às escolas, onde são agrupados em pequenos grupos, com distanciamento, e atendidos por um único professor, para controlar o contato. 
No Brasil, não daria para ser exatamente assim, pois grande parte dos estudantes precisaria ir às escolas. Mas a ideia de um professor para um pequeno grupo de estudantes poderia ser adotada na perspectiva de ensino acima proposta. Ocasião de troca de sugestões entre os pares, para que as atividades sejam transdisciplinares, calcadas na vida cotidiana dos estudantes e, de preferência, com muita arte.
O formato aula é muito antigo e bastante questionado por estudiosos da educação, a começar por Paulo Freire. Sob suas influências e de outros grandes mestres da educação, atividades descentradas do professor, mas com sua mediação, podem desenvolver o protagonismo dos estudantes e também que aprendam uns com os outros. Nesse caso, com os colegas, mas principalmente com os familiares.
Com limitações, isso pode ser vivido a distância, apenas porque há necessidade de distanciamento social.
Os desdobramentos dessa perspectiva para o exercício da profissão de professor são inegáveis. Um risco, por exemplo, é a redução do papel do professor e a geração de desemprego. Riscos que independem da pandemia e já são um processo em curso no ensino oferecido às classes médias. Os próprios professores estudam a distância e seus cursos são reconhecidos por instâncias públicas, ainda que se saiba amplamente das limitações. Entretanto, a progressiva ênfase da contemporaneidade no privatismo geraram e aprofundam esses riscos. Muitos argumentam que um único professor, em modalidade a distância, pode atender a centenas de estudantes, mas isso já acontece no interior das escolas. Um professor de disciplina específica pode chegar a atender mais de uma dezena de turmas, mesmo trabalhando apenas um turno (artes, educação física e religiosidade são os exemplos mais graves).
Se pudermos agora experimentar um professor para uma turma, partir de temas significativos e lúdicos para a comunidade para estudar e aprender, evitar os longos textos que excluem estudantes em situação de analfabetismo, aproveitar sons e imagens, respeitar mais o tempo da aprendizagem do que o do ensino, avaliar não com base apenas no que se espera, mas também com base no ponto-de-partida de cada estudante, conhecer os contextos familiares e sociais, não terá valido a pena?
E o que fazer com os estudantes que não puderem acessar essa forma de estudos em casa? Focar neles quando for possível estar novamente nas escolas; induzir as instâncias governamentais a fornecer tecnologias em casa: aparelhos e acesso à internet, sem a necessidade de compra de pacotes prontos de empresas; propor abordagens e soluções locais, para cada escola e turma, o que só os professores podem fazer; considerar as variações regionais: cada estado e município brasileiro passará pelo pico da pandemia em momentos diferentes.
Esta é apenas uma tempestade de ideias. Só em conjunto educadores e especialistas podem elaborar propostas passíveis de efetivação. Por isso, bancos de atividades produzidas por professores e disponíveis aos integrantes de cada rede podem constituir uma alternativa para os que se sentem menos à vontade em experimentar.
A profissão de professor tem mudado historicamente. Nem sempre podemos dizer que houve progressos. A universalização do acesso às escolas veio acompanhada de graves implicações para a profissão, embora não se possa questionar a importância do acesso. E agora, tanto pode haver progresso quanto estagnação e desvalorização. Depende de como seus atores vão construir o enfrentamento desse desafio.

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