Estreia

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 23 de março de 2021 | 11:30


 

Seus amigos armaram armadilha para Mary. Eles, dois cineastas, acreditavam que ela funcionaria bem como atriz. Mas não lhe disseram pois sabiam que ela fugiria.

Andrei a convidou: "vou fazer um novo filme e gostaria que você me ajudasse. As filmagens costumam durar horas e você poderia fazer umas comidas para oferecermos ao elenco e à produção. Pode ser patrocinadora?"

Mary amava Andrei como se ama a um amigo. Aceitou.

Charles a queria convidar para um longa. Então reforçou o convite para a produção de Andrei, dizendo que levaria um livro para que Mary o analisasse como especialista em literatura. E emprestou seus equipamentos, também operando a câmera principal.

O roteiro foi discutido por poucas pessoas e não havia texto. Mary não se preocupou com isso pois não pensava participar. Apenas teria a oportunidade de ver as filmagens de um diretor reconhecido como genial em vários países. Seu grande amigo.

Na data marcada, teve uma crise de ansiedade. Não gostava de cozinhar e não sabia fazê-lo muito bem. Aceitou o convite por amor.

Cerca da hora marcada para o início dos trabalhos, foi ao supermercado para comprar os ingredientes. Entrou em cólicas. O supermercado não tinha banheiro para clientes, mas o shopping ao lado tinha-o.

Foi a custo que chegou à área dos banheiros e se dirigiu apressada à porta. Mas havia que pagar a entrada primeiro. Olhou o caixa, longa fila. A caminho dela, não suportou e fez cocô na roupa, tendo o primeiro petardo saltado da calcinha, atravessado o largo vestido e atingido o asséptico piso.

Mary continuou andando rumo à fila incólume, olhando pelo rabo de olho se alguém percebera.

Logo depois, um cheiro fétido invadiu as redondezas, pondo-se as pessoas a comentar. Felizmente, duas senhoras que passavam pelo corredor a salvaram: "Veja! Algum cachorro fez cocô e o dono não recolheu. Que absurdo! Vamos chamar a limpeza".

A limpeza fez rápido seu papel. O cheiro permaneceu mais um tempo e as pessoas em volta enjoavam. Mary continuava fazendo cocô, agora pastoso, enchendo a calcinha. Desesperada. Podia não dar tempo.

Adquirido finalmente o ticket, mal chegou ao cubículo sanitário. E foi como se suas entranhas se esvaíssem. Quanto mais dava descarga, mais cólicas a empurravam para fora.

Foi-se longo tempo até que Mary se sentisse melhor. Estava atrasada. A higienização foi difícil. Frágil, dirigiu-se ao local da produção, depois de voltar lentamente ao supermercado e comprar fartas guloseimas.

Já na cozinha, depois de mais uma visita ao banheiro para se lavar no bidê, concentrou-se na comida. Silenciosa, séria, sentindo-se vazia.

Charles a ela se dedicou com conversa mansa e culta. Com informações sobre os desejos para seu próprio filme. Sedutor. "Você gosta de cozinhar?" "Não. Mas o amor tem dessas coisas".

Depois de servir pães, pastas naturebas e castanhas, sentou-se, aliviada. Foi quando Andrei anunciou o início das filmagens e anunciou a Mary: "Brigitte trouxe figurinos para você testar". "Não! Eu não vou participar!"

Andrei fez cara de intensa preocupação: "Mas eu preciso! Você é a mulher negra do elenco, calcado na diversidade fenotípica e cultural! É apenas uma figuração, você nada terá que falar."

Mary não pôde resistir a essa necessidade ideológica que compartilhava, ainda mais quando Charles mansamente disse: "Preciso vê-la diante das câmeras para nosso projeto em comum!"

Audrey fez-lhe a maquiagem e lhe emprestou roupas pretas, montou turbante.

Mary foi posta à frente do elenco e precisava manter os olhos na protagonista. Seu rosto sério e silencioso ficaram belos. A fragilidade física estava impressa na tristeza do olhar.

Ficou lindo o filme. Após, Charles convidou: "Quero-a para minha protagonista".

Mary não titubeou. Cantou à capela, desafinada, para grande encanto do alternativo elenco e seus produtores. Embora não tivesse entendido nada do que seria o filme. Este, pronto, ficou belíssimo. E ela não teve público senão entre os iniciados. Seus amigos ficaram chocados com o resultado, onde Brigitte era santa e puta. E viciada, mas suave e pura.

Mary fugiu assim que pôde e foi atacada de uma enxaqueca terrível, até que vomitou copiosamente sua própria comida.

Melhorou. Estava descabaçada. Adentrou serena o projeto do longa, crendo-se capaz. Brilhou e foi premiada, junto com Charles. Mas manteve o horror da estreia e, antes da segunda, deprimiu seriamente. Arrastou-se à sala de exibição e concebeu um conto musical. Aguardou o próximo convite. Pensa que a cena do shopping devia ser remontada e filmada. Não teria problema em produzir as cólicas.

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