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Passeio no Petrô

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 4 de junho de 2024 | 07:32

Para entrar e fruir o Petrô, só escoltada por algum morador. O Petrô era um subúrbio cuja comunidade tomara o poder. Nem o Estado nem os Estados paralelos haviam logrado controlar o território. Em consequência disso, os moradores de outros subúrbios, do centro da cidade, do estado e do país tinham extrema curiosidade em relação ao Petrô e sua experiência era desconhecida de qualquer não-morador.

Maralinda morava na vizinhança do Petrô. Recém-formada em jornalismo, já distribuíra currículos para jornais da região e do estado, inclusive os online, todos com foto, conforme exigido, jamais sendo chamada sequer para uma entrevista. Não enviara currículos para emissoras de rádio e televisão porque tinha como ponto forte a escrita. Desconfiava de que sua aparência e endereço contribuíam para que os veículos de comunicação descartassem seus currículos. Preta retinta e moradora dos arredores do Petrô, podia ser que não fosse detentora dos requisitos desejados por tais veículos. Sabia-se que os órgãos de comunicação praticavam um conceito de aparência extremamente racista e que a sociedade em geral, mas principalmente seus governantes temiam o espraiamento da experiência do Petrô.

Um dia, Maralinda teve uma ideia mirabolante. Se conseguisse adentrar o Petrô e anunciasse tal furo de reportagem aos órgãos de comunicação, exigindo com preço para sua publicação um contrato bem amarrado de cinco anos no jornal que lhe oferecesse as melhores condições, certamente conseguiria um emprego. Seria uma chance de mostrar suas extraordinárias habilidades, reveladas na graduação e extremamente admiradas pelos professores e colegas. Não tinha dúvidas: seria disputada no mercado.

Pôs-se a matutar, a Maralinda. Quem poderia facultar-lhe o acesso ao Petrô? Consultou discretamente seus vizinhos, que sempre a tiravam de cabeça e ainda expressavam um terror diante da ideia. O Petrô era tido como violento, inclusive na tomada do território à sociedade envolvente houvera enfrentamentos sangrentos com a polícia.

Foi não mais que de repente que se lembrou de seu antigo Professor do Ensino Fundamental, que se apresentava alegremente como Tibeiça, dados os lábios extremamente grossos, dentre as muitas características de seu biotipo afrodescendente. Tibeiça morava no Petrô e era das raras pessoas que trabalhavam fora dos limites da comunidade. Esta era autossustentável, garantindo ocupação a toda a sua população, com moeda própria e importação de produtos que não produzia. 

Tibeiça era um intelectual da comunidade, filho de um líder referência do Petrô. Ele ensinava na universidade da comunidade, mas achava que podia ensinar alguns princípios da autonomia comunitária aos estudantes do entorno. Maralinda fora sua estudante e aprendera muita coisa nesta perspectiva.

Tibeiça chegou a diretor da escola e a revolucionou, com horta que enriquecia a merenda, criação de galinhas, espaço zen para fruição na hora do recreio - um jardim com redes e cadeira confortáveis, tão bonito que nem de longe era alcançado por qualquer praça da região. A biblioteca da escola tornou-se um centro cultural e laboratórios de todas as ciências foram inaugurados. Tudo isso com captação de recursos nas instâncias estaduais e estaduais e grande irritação da instância municipal que conhecia seus objetivos.

Uma perseguição sem tréguas abateu-se sobre Tibeiça. Extremamente articulado ao sindicato dos professores, aderiu a uma greve e foi exonerado de seu cargo, considerado de confiança do Prefeito. Tibeiça entrou em embates judiciais para reaver seu cargo, sem sucesso até o momento.

Eureka, pensou Maralinda. Tibeiça já quase não saía do Petrô, afastado de seu cargo de Professor que estava, em processo administrativo disciplinar. Maralinda começou a perguntar a um e a outro, sempre sem perspectivas, e assim permaneceu durante meses de desemprego. Mas um dia recebeu um telefonema afobado: - Maralinda, o Professor acabou de sair do Petrô para ir à Prefeitura! Maralinda desabalou para a entrada do subúrbio, guardando alguma distância, já que o acesso era fortemente vigiado.

Aguardou horas. De repente aponta Tibeiça na curva de um beco e Maralinda espera tremendo. - Professor! Deu um passo à frente ela quando chegava o Professor. Tibeiça não a esquecera e abriu largo sorrisso: - Maralinda!

Ela se aproximou, recebeu um caloroso abraço e informou: - Há muito espero para lhe falar. E desfiou o rosário.

Tibeiça ouviu tudo circunspecto e respondeu: - Nunca autorizamos ninguém a entrar. Mas acho que uma divulgação da experiência da comunidade pode interessar a parte da população e a alguns líderes, como forma de combater os estereótipos construídos sobre a comunidade. Eu vou sondar. Anotou o telefone de Maralinda no celular, que também tinha operadoras próprias no Petrô.

Muitos dias transcorrerem e Maralinda oscilava entre a esperança e o desalento. Até que Tibeiça ligou: - Maralinda, eu consegui convencer algumas lideranças e pessoas que vivem no caminho que liga a entrada do Petrô até o centro. Você não terá uma visão muito ampla da vida na comunidade, mas o suficiente para seu furo de reportagem.

Maralinda exultou. Marcou encontro no dia seguinte com Tibeiça nas proximidades da entrada do Petrô.

Era manhã do dia combinado. Tibeiça, antes de fazer a entrada triunfal com Maralinda, alertou: - Você não pode dar nenhum passo em falso, inclusive só poderá fotografar uma área e só conversar com as pessoas que eu lhe indicar, que são as que concordaram em falar.

Assim que entraram no Petrô, havia um longo beco com numerosas curvas e casas pequenas com vários andares, porque a densidade demográfica era muito alta e a comunidade não tinha intenções de expansão territorial. Inclusive, segundo Tibeiça, havia discussões comunitárias sobre vários assuntos, inclusive controle da natalidade voluntário, uma vez que a comunidade ainda praticava muitos filhos, como era costume até a década em que se emancipou.

Os andares térreos dos pequenos prédios exibiam portas abertas, às quais assomavam rapazes retintos como Maralinda. Tibeiça explicou que eram os comerciantes de drogas, já que o Petrô tinha seu uso liberado. Eles também tinham o controle da entrada labiríntica, de forma que em caso de alguém furar a barreira militarizada das fronteiras, encontraria a continuidade das barreiras. Os rapazes olhavam com desconfiança para Maralinda mas não tiveram nenhuma atitude contrária à sua entrada.

Foi ao final desse corredor vigiado que Maralinda viveu sua primeira experiência fantástica no Petrô: começou a pisar em lama aquosa e sentia caranguejos sob seus pés, exatamente como num mangue. Mas seus pés não afundavam e ela andava perfeitamente sobre a lama, como dizia a tradição cristã que fizera Jesus por sobre as águas. O movimento dos caranguejos era sentido com intensidade por sob seus pés. Foi quando Tibeiça informou: - Essa espécie de mangue circunda toda a comunidade e ninguém que não seja habitante do Petrô conseguiria atravessá-lo sem afundar. Felizmente ninguém com essa característica chegou até aqui e nem sequer forçou as barreiras policiais. Maralinda andava naquele solo macio maravilhada.

Pouco depois desse mangue diferente, começavam a aparecer casas muito juntas, mas não sombrias e escuras como as casas dos comerciantes de drogas. Tibeiça apontou uma casa vermelha, surpreendentemente grande, com dois andares, e informou: essa é a bi-casa do meu pai. Maralinda olhou seus contornos como quem via um grande palácio, mas se tratava de uma casa simples e ouviu Tibeiça de novo: - Não há grande diferença entre as moradias dos líderes e as da população em geral. A residência de meu pai foi reformada voluntariamente por populares que têm grande admiração por sua participação no programa político de emancipação e organização do Petrô. Meu pai era um empresário de sucesso no Petrô antes, seu acesso a recursos materiais caiu muito, sem que ele ou minha mãe se importassem, enquanto toda a população melhorou de vida, não havendo miseráveis nem pobres.

Tibeiça apontou sua casa, semelhante às demais, porém pequena, pois ele ainda não constituíra família. Maralinda ali bebeu água e descansou. Então começariam os trabalhos de campo. 

Tibeiça convidou a ex-estudante para conhecer uma das casas comerciais mais tradicionais do Petrô: um supermercado apertado e abarrotado, onde a moeda de troca era chá. Com folhas de chá frescas ou desidratadas, era possível comprar qualquer mercadoria no local. Mais ao fundo do supermercado, Maralinda viu que havia uma espécie de boate em que vários clientes bailavam enquanto tomavam chá. A jornalista ficou imaginando como os comerciantes proprietários escoariam tanto chá, mas começara a perceber que o Petrô tinha ambientes e práticas fantásticas, como só na literatura.

Escolheu a seu bel-prazer clientes do supermercado para entrevistar. Direcionou as entrevistas para saber como funcionava a economia do Petrô e percebeu a adoção de alguns traços ditos comunistas que permitiam uma desigualdade mínima entre os habitantes, e também traços de economia de mercado que mantinham a produtividade e a circulação de mercadorias em nível alto. Fotografou o inverossímil ambiente, especialmente uma menina que se esgueirava para baixo das prateleiras, com carinha muito faceira e bonita. Observou que havia também outras crianças no recinto, à vontade, não pareciam acompanhadas de adultos e em segurança.

Tibeiça informou que não tinha autorização para levá-la a outros espaços do Petrô e perguntou se o que vira e ouvira era suficiente para obter o furo de reportagem. Ela aquiesceu e intimamente teve vontade de pedir para permanecer no Petrô. Mas pensou que podia perfeitamente tentar voltar depois de dar uma lição aos órgãos jornalísticos da sociedade envolvente.

 

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