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A pensionista

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 11 de junho de 2024 | 07:39

Romário estava paciente terminal em grande hospital. Viúvo, sentia a casa vazia, definhava, desenvolveu doença degenerativa. Internado, os filhos correndo pelas próprias vidas, contou mais com uma amiga da família para lhe fazer companhia, acalmá-lo diante das agulhas, dos duros efeitos da quimio. Os vizinhos de leito admiravam o desvelo da amiga, sua disponibilidade.
O hospital precisava documentos, amiga providenciava, inclusive comprovante de endereço, não o de Romário, mas o seu próprio.
Romário desaparecia a cor, os cabelos, as reservas de gordura, e se passaram longos meses. Os filhos corriam, corriam pelas próprias vidas e vinham aos horários de visitas, agoniados, saíam para chorar, às vezes vomitar.
Veio o tempo, inexorável, o tempo de acabar. No velório, amiga providenciava funerária, papeis, até pagar pagou. E chorava poucas lágrimas junto ao caixão, discreta, o tempo todo. Ninguém lhe estranhava a legitimidade.
Dia seguinte, veio o espólio. O inventário ia ser pauleira, muitas dívidas, muitos bens sem registro. Os filhos deram um tempo de correr pela vida de sempre, correram à casa do pai, outrora tão vazia, agora tão cheia de objetos, inclusive ancestrais. Isso é meu, isso vai pro antiquário, puxa-que-puxa, a casa ficou vazia de fato.
Súbito liga uma voz estranha ao advogado da família. Nobre colega causídico, quanta satisfação em falar-lhe pela primeira vez. Sou o representante legal da viúva.
Viúva? Estranhou o advogado da família. Ao que me consta, o Sr. Romário é que era viúvo, morreu de tristeza, nem quis namorar.
De fato, ilustríssimo colega, o Sr. Romário sentiu muito a morte da esposa, segundo minha cliente uma abnegada mulher. Mas minha cliente era sua concubina, se é que me entende, e diante da doença definitiva, o Sr. Romário voltou a aceitar sua companhia e seu carinho. Reuni sobejas provas, tanto do relacionamento paralelo ao casamento, dos pagamentos efetuados pelo Sr. Romário do aluguel para minha cliente, de ela ter assumido compromissos e apresentado a documentação, sempre que necessário, ao hospital.
O advogado da família quedou boquiaberto, quando ouviu. De modo que minha cliente reivindica sua parte no espólio, metade, como sabe o senhor, e sua parte na pensão.
O contraditório no litígio judicial foi ferrenho, mas não deu outra. A amiga teve ganho de causa, depois de haver pagado procedimentos para o inventário. O filho menor de Romário divide sua pensão com a amiga.
Os descendentes juram de pés juntos que a amiga é uma estelionatária e todas as provas forjadas. Sabe lá. O que é não ter e ter que ter pra dar.
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