Pedro Almodóvar, diretor espanhol nascido em 1949 na
Espanha, é um dos poucos realizadores de cinema com um trabalho autoral
palatável para o grande público no mundo. É o cineasta espanhol mais renomado
desde Luís Buñuel. Tem mais de 20 longas-metragens produzidos desde 1980,
continua ativo e, com O quarto ao lado, estreia fazendo cinema em língua
inglesa. Dessa forma, pode tornar sua obra ainda mais receptível no mundo, pela
penetração da língua inglesa, e ainda trabalhar com atrizes e atores falantes
nativos dessa língua, sem perder seu estilo na escolha de quem faz as
interpretações.
O trabalho de Almodóvar tem linhas de força desde seu
início. A forte ênfase em personagens femininas, inclusive com inspiração em
sua mãe e em outras mulheres da família, resultando em sensíveis reflexões
sobre o feminino; a combinação do drama, inclusive o melodrama com a
comédia; o grande domínio dos gêneros: drama, comédia, thriller; o uso de cores
vibrantes, especialmente primárias e secundárias, com vistas a despertar
emoções determinadas - e no uso das cores o contraste entre cores complementares;
a atitude de crítica social; a influência de Hollywood, o que o torna mais
acessível ao público que consome este cinema - e o próprio reconhecimento desta
escola cinematográfica, pois já venceu dois Oscars de filme internacional; a
filiação à pop-art, como discutirei a seguir; a parceria com atores projetados
para o cinema internacional, como Antonio Banderas e Penélope Cruz, e também
com atores de traços exóticos, como Carmen Maura, Marisa Paredes e,
recentemente, Tilda Swinton; design moderno, estilo visual maximalista,
escatologia ou doutrina das coisas que devem acontecer no fim do mundo; dentre
outros variados aspectos.
Seminarista na juventude, abandonou a carreira religiosa e
adotou a crítica da religião em toda a sua obra. Não teve recursos para estudar
cinema, mas, autodidata, tornou-se um diretor completo, inclusive escrevendo o
roteiro de todos os seus filmes.
Seu trabalho se divide em pelo menos três fases. Entre 1980
e 1993, inspirou-se e foi o maior expoente do movimento contracultural espanhol
La Movida Madrileña. Este movimento foi uma explosão da cultura espanhola
depois da repressão encetada pela ditadura de Francisco Franco. A obra de
Almodóvar nesta fase pode ser caracterizada como uma quebra de tabus, a busca
de expressão livre de vários dos elementos culturais que caracterizavam a sua
geração, mas não podiam ser ditos e filmados. A segunda fase, dos anos 1990 a
2000, marca sua grande proximidade com a pop-art. Não que ela não estivesse
presente antes, mas agora ganhou destaque. Dos anos 2010 em diante, pode-se
dizer que tem feito filmes mais maduros, dando relevância aos temas que escolhe
e os abordando com bastante seriedade. É o caso de O quarto ao lado.
Seu acentuado estilo também possui outras continuidades: ele
sempre apresenta o assunto principal da obra na primeira cena; os personagens
principais atuam em função de fatos ocorridos no passado; as mães são uma
constante (ver a reflexão sobre a maternidade por Martha); os personagens têm
sempre que lidar com a culpa.
Dentre as linhas de força da sua obra, escolhi trabalhar com
mais vagar o elemento kitsch, até porque há muita literatura de pesquisadores
sérios sobre este aspecto.
O kitsch constitui um estilo de vida e dos ambientes
contemporâneos, e, na arte, pode ser uma atitude de crítica social, como
acontece em Almodóvar. Este estilo consiste em tomar objetos das culturas de
elite e adaptá-los como produtos para a cultura popular, numa época de explosão
de consumo e justificável desejo popular de acessar essa experiência e ainda
expressar sua autenticidade. No limiar, o estilo pode ser chamado de brega,
numa adaptação livre à língua portuguesa. Mas também representa a autenticidade
do povo ao acessá-la. São exemplos as Lojas Americanas e os shoppings, Marilyn
Monroe e Elvis Presley. Bem como Rosane Collor e Xuxa no Brasil - pois o estilo
futurista também é kitsch. Nele está expressa a ética do supérfluo, da extinção
planejada dos objetos, dos preços baixos e prestações a perder de vista.
Esse estilo de vida está presente desde a burguesia
ascendente no século XIX, que encomendava reproduções de obras de arte
consagradas para expressar seu gosto pelo sagrado contido nesses objetos, até a
dessacralização da arte em nossa época e sua transformação em objetos
descartáveis.
O campo da arte, em seu período conhecido como pop-art
reconheceu e criticou esse estilo de vida. Temos Andy Warhol como o mais
destacado expoente desse movimento, mas Almodóvar também o é. Os artistas
pop-art tornaram objetos de arte bens de consumo presentes em profusão na nossa
cultura. Citamos o que fez Warhol com Marilyn Monroe, com latas de molho de
tomate e com a marca da Coca-Cola.
Almodóvar aprofunda-se nessa estética e nessa ética, a de
denunciar os parâmetros da cultura de massas. Isso está presente no uso de
cores vibrantes de maneira extremamente intencional e, com grande ênfase nos
cenários e figurinos. Uso de estampas estravagantes, roupas e acessórios em
cores, uma parafernália de objetos nos cenários. Mas também nas temáticas. São
icônicos para representar essa continuidade em sua obra os filmes Mulheres à
beira de um ataque de nervos e Kika.
Almodóvar é um apaixonado pela moda. Não por acaso dá grande
atenção aos figurinos dos seus personagens e aos cenários. Nestes últimos,
combina elementos pop com elementos sagrados. Monta por exemplo um altar para
uma de suas personagens no qual coexistem imagens de santos, gravuras de divas
do cinema, estatuetas e flores de plástico, objetos de decoração, ou seja, tudo
o que nos é sagrado ou deixou de sê-lo, mas os cultivamos desde o século XX. Há
a presença de eletrodomésticos, de móveis muitas vezes considerados cafonas
pelas elites e muito ao gosto popular por uma questão de acesso e de criação.
Os figurinos são magníficos. Estampas combinadas com cores
vibrantes, estampas de oncinha, perucas, bijuterias, saltos escandalosos. Uma
das obras traz uma bolsa Louis Vuitton falsificada! E, pasmem: em alguns casos
Almodóvar veste personagens com alta costura, como Channel e Jean Paul Gautier.
O figurino de A pele que habito, por exemplo, foi assinada por Gautier.
O quarto ao lado é uma obra da maturidade de Almodóvar.
Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, nele revemos a presença de
cores extasiantes, uma arquitetura magnífica assim como o design de interiores,
mulheres fortes interpretadas por atrizes mais velhas e de traços exuberantes,
combatendo assim o etarismo e os conceitos de beleza padrão. O tema da
eutanásia não poderia ser mais contemporâneo, num contexto de envelhecimento
das sociedades e proliferação de doenças degenerativas, cuja medicina sabe de
antemão quando são terminais. Tilda Swinton interpreta uma mulher atingida por
um câncer então sem cura e opta pela morte auto-induzida. Almodóvar, com sua
denúncia do consumo, mostra que se pode comprar uma pílula da morte mesmo onde
a eutanásia seja proibida. Nesse caso, na dark web, o que também traz um
diagnóstico e uma crítica do mundo digital.
Mas a personagem quer viver a morte com personalidade,
dignidade e estética. Assim, ela procura uma casa de magnífica arquitetura,
paisagismo e design de interiores (e aqui Almodóvar insere suas cores). Faz o
convencimento de uma amiga para acompanhá-la, o que se dá não sem dores e
hesitações, para garantir uma solidão menor na morte, se isso é possível, e
para que seu corpo não deteriore sem destino adequado. O kitsch volta, mas com
grande beleza, na fotografia da morte da personagem, maquiada, penteada e vestida
com amarelo para morrer. Porém, é o outono na natureza, na vida de Martha e nas
cores, predominantemente secundárias e complementares. Não mais o vermelho de
suas fases anteriores.
Como nos posicionamos diante de alguém que decide morrer
porque vai definhar? Como fica a religiosidade e a secularização de nossa
época? É defensável uma estética clean ou kitsch para morrer? E os amigos que
apoiam, são criminosos?
Ainda sobre a estética, podemos delinear melhor algumas
cenas do filme. Quando Martha esquece a pílula da morte em casa e volta com
Ingrid para procurá-la, elas mergulham em objetos coloridos e a câmera se
demora numa caixa de metal retrô. Atrás de Ingrid, há uma estante com os livros
de Martha e os souvenirs trazidos de viagem. Mais uma concessão de Almodóvar ao
kitsch, que ele insere pouco nessa obra.
Outro momento é quando chegam à casa da floresta e avaliam
tudo. Veem na sala um quadro de Eduard Hopper, Pessoas ao sol, com pessoas
deitadas em espreguiçadeiras, estando Almodóvar citando a obra que o inspirou
para a morte de Martha. O quadro é uma cópia, mais uma citação da pop-art. As
espreguiçadeiras de fato, na casa da floresta, estão em verde e laranja, cores
complementares, recurso muito comum em Almodóvar. Os sofás da casa também estão
em cores fortes, assim como a porta do quarto escolhido por Martha. Mas dentro
dele há uma penteadeira retrô.
Outra característica de Almodóvar é o cinema dentro do
cinema ou a metalinguagem. O filme The dead é assistido pelas amigas no
televisor e Martha recita trechos de James Joyce, falados no filme, sobre a
neve cair sobre todos, os vivos e os mortos:
"[A neve] caía, também, sobre todo o solitário
cemitério da colina em que enterrado Michael Furey repousava. Espessa pousava
deposta em rajadas nas cruzes contorcidas e nas lápides, nas pontas do estreito
portão, nos espinheiros nus. Desmaiava-lhe a alma lentamente enquanto
ouvia no universo a neve leve que caía e que caía, leve neve, como o pouso de
seu fim definitivo, sobre todos os vivos e os mortos".
Então Almodóvar está assumindo outra inspiração, pois, numa
das cenas em que as duas amigas estão nas espreguiçadeiras, Martha observa a
neve colorida e faz alusão aos efeitos das mudanças climáticas em uma de suas
facetas belas.
As mudanças climáticas, aliás, são um tema contemporâneo e
forte no filme. A personagem Damian é especialista no tema, pessimista, e acha
que não se devem mais ter filhos, porque que mundo eles vão herdar? Também põe
a culpa no neoliberalismo e nos EUA, que intensificam a destruição do planeta.
Almodóvar sempre fez forte crítica social. Além da sociedade de consumo, fala
também da sociedade distópica (oposto de utopia) que temos.
Ele também faz crítica da religião. O policial que acusa
Ingrid de cumplicidade no crime de Martha, o suicídio, é um fundamentalista
religioso. Almodóvar foi seminarista e abandonou a carreira clerical por
críticas à religião.
A crítica dos costumes continua nesse filme. Por exemplo
quando Ingrid conhece o personal trainer que atende na academia que ela decide
frequentar. Ingrid fala da morte próxima da amiga e ele diz que gostaria de
dar-lhe um abraço, mas as regras da academia o impedem por causa do risco da
denúncia de assédio.
São muitos os aspectos a considerar, bastando que abramos os
olhos para as multifacetas, as imagens e o roteiro tão bem articulado por
Almodóvar.
Referências
BELTRÃO, Hallina; WAETCHER, Hans. Eu amo kitsch: uma
análise da atitude kitsch na obra de Pedro Almodóvar. Infodesign 5 - 1 (2008),
36-44.
CORDEIRO, Cinara Ferreira. As cores de Almodóvar. Uma
análise fílmica da representação nas cores das obras do diretor Pedro
Almodóvar. Brasília: Uniceub, 2010.
HERDY, Arthur. A estética Kitsch e a diversidade sexual
no cinema de Pedro Almodóvar. Loz Engelis. Word Press. 2011.
JOVER, E.R.; RICHTER, E.P.; SOUSA, E. L.A. Repetição e
estilo em Almodóvar. Psicologia: Reflexão e Crítica, 11(3), 1998.
JOYCE, James. Os mortos. Dublinenses. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1992.
KWITKO, Ana Paula. O kitsch e a crítica social de Pedro
Almodóvar: uma análise através do figurino do filme Volver.
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