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Cineclube Casandanti - O segredo dos seus olhos

Written By Ana Claudia Gomes on sexta-feira, 13 de junho de 2025 | 08:45

O segredo dos seus olhos, produção argentina e espanhola, foi dirigido por Juan José Campanella e protagonizado por Ricardo Darín. Nela, está muito presente a ideia de que os olhos são janelas da alma. A câmera filma os olhares dos personagens diversas vezes, buscando simbolizar seus sentimentos, e o caso mais emblemático é o do assassino Isidoro Gómez, que olha com obsessão em fotos da adolescência para sua futura vítima, a professora Liliana Colotto, e é por esse olhar que ele será identificado como assassino. A ideia de que os olhos são janelas da alma é muito antiga, não se sabendo sua real origem. Mas ela está presente na Bíblia e em autores da arte clássica, como Leonardo da Vinci e Shakespeare.

Outra importante mensagem do filme é a de que as paixões humanas são inescapáveis, não importa o quanto tentemos fugir delas. O personagem principal, Benjamin Espósito, fica marcado por um caso que, como investigador judicial, teve sob sua responsabilidade em 1974, e permanece por ele instigado até a aposentadoria, 25 anos depois, quando decide escrever um romance sobre o mesmo. Também sua paixão por Irene Menéndez-Hastings, sua chefe na repartição, dura essas décadas, embora ele tente conter o sentimento. Essa paixão contida é correspondida por ela todo esse tempo também.

Seu assistente, Pablo Sandoval, homem leal e que chega a se sacrificar por Benjamin, tem a paixão imoderada pelo álcool. Isidoro Gómez transforma uma paixão de infância em um crime hediondo, assim como cultiva uma paixão pelo futebol, aliás compartilhada por tantos argentinos. Ricardo Morales, o noivo da vítima, converteu seu amor incomensurável por Liliana e seu desejo de justiça em um gozo de vingança igualmente sem medida.

O personagem Romano, também funcionário da justiça, colega de Benjamin, nutre por este uma rivalidade ou inveja que o leva, também através de décadas, a prejudicar a investigação do colega, a soltar o assassino mediante fiança e a tentar matar o próprio Benjamin, quando este retorna de um exílio no interior, no qual estava justamente fugindo do opositor.

Como mostra a obra, as paixões humanas escravizam, entorpecem e consomem vidas inteiras. Sobre isso, lembramos o filósofo Baruch Espinosa que, em sua obra máxima, Ética, se debruça sobre o entendimento das paixões humanas. Ele diz que as paixões acontecem quando os corpos com os quais temos contato na natureza nos afetam de um modo que nos faz padecer. Assim, podemos ser afetados por alguém que nos inspire ódio ou amor, podemos ser afetados pelo álcool, nos tornando alcóolatras, podemos ter fetiches entre nossas preferências sexuais, etc. São tantas as paixões que Espinosa dedica toda a parte 3 de sua Ética a identificar e descrever os afetos que podemos ter, mostrando como eles podem gerar ações e paixões.

É curioso que Espinosa destaca que não temos livre-arbítrio neste mundo, pois somos afetados por tudo o que nos cerca. Para ele, a única possibilidade de liberdade humana é compreender os afetos para moderá-los. Assim, segundo Espinosa, não nos cabe julgar as paixões ou tentar eliminá-las, apenas tentar controlar aquelas que diminuem a nossa potência de viver.

A obra de Campanella reflete sobre como é difícil moderar as paixões e até mesmo defende a ideia de que devemos vivê-las sem culpa. Afinal, mesmo presenciando a bancarrota de todos os que aderem a suas paixões, Benjamin decide ceder à sua. Abdica de ser um homem curado.

O segredo de seus olhos é considerado um dos maiores filmes do cinema argentino, que por sua vez é considerado o melhor cinema sul-americano, quiçá latino-americano. Seria o segundo filme mais importante do país, após A história oficial, de 1985. Venceu o Oscar de melhor filme internacional em 2010, assim como o prêmio espanhol Goya, na mesma categoria. É considerado o filme argentino mais visto nos últimos 35 anos. Teve orçamento curto - dois milhões de euros - apenas sete semanas de filmagens, cenários simples mas impactantes, atores de primeira, e sua falha técnica mais comentada é a maquiagem do envelhecimento dos protagonistas.

É um filme que ressignifica o gênero policial e  jamais resvala nos clichês do gênero ou se compara à produção massiva de baixa qualidade. Há poucos tiros e nenhuma explosão. O ambiente dos escritórios e tribunais ressurge asfixiante. A tradicional adrenalina das perseguições de carros é muito bem substituída por uma bela sequência de imagens aéreas de um estádio de futebol lotado e em pleno fervor do jogo. Aliás, este é um plano-sequência (cena filmada inteiramente sem cortes) considerado um dos melhores do cinema mundial no século XXI.

A fotografia envelhecida e dessaturada (tons pasteis) de Félix Monti ajuda a criar esse ambiente e proporciona diversas cenas maravilhosas. Cada plano parece uma pintura bem pensada e os primeiros momentos do filme remetem às artes plásticas.

Também é uma homenagem aos filmes noir, gênero ou subgênero desenvolvido ao longo da primeira metade do século XX, no Ocidente, no contexto das duas grandes guerras. O filme noir geralmente tem trama cercada de suspense, crimes, amores, reviravoltas, pano de fundo político, e uma estética com muita sombra e tons pasteis. Geralmente traduzem desencanto, desilusão com o mundo moderno em sua perda de sentidos. Seus mestres são Fritz Lang e Orson Wells. Alfred Hitchcock também fazia filmes noir e era mestre em misturar suspense, drama e humor, sendo uma importante referência para Campanella em O segredo dos seus olhos.

O roteiro é um ponto forte da obra, o que já é considerado tradição do cinema argentino. Foi escrito pelo próprio Campanella e Eduardo Sacheri, autor do livro La pregunta de sus ojos, que deu base ao filme. Aliás, o filme é considerado uma adaptação que supera a obra original. Composto de flashbacks do começo ao fim, e contornando o risco de que essa escolha prejudique o ritmo, todo o enredo vai ganhando corpo a cada cena, em um crescendo que captura o espectador e que culmina numa assombrosa cena final.

O crime retratado se passa na época do governo de Isabel Perón e das ações constantes da "Triple A" (Aliança Anticomunista Argentina), grupo de repressão do Estado que recrutou gente da pior espécie, entre oficiais da polícia exonerados por delitos, civis com fichas criminais e matadores de aluguel. Esse fenômeno é retratado no filme num dos picos de tensão, mas com economia e sem demagogia.

O filme tem diversos acentos cômicos, o que mostra o trânsito do diretor em diversos gêneros. É um exemplo o périplo de Espósito e Sandoval em busca de pistas do assassinato - como a visita à casa da mãe de Isidoro Gómez. Aliás, o ator que interpreta Sandoval, Guillermo Francela, é um comediante que surpreendeu neste papel dramático.

A montagem é mais um ponto forte da obra. A escolha noir por uma profusão de flashbacks cria a sensação de um labirinto narrativo e, não por acaso, Campanella também assina a montagem. Trata-se, portanto, de um filme profundamente autoral, considerado o melhor exemplo de direção na Argentina.

Ricardo Darín é o grande chamariz da obra. Ativo no cinema argentino desde o final dos anos 1970, Darín já fez mais de cem filmes, sendo aclamado como um ator completo, que transita entre gêneros e estilos em seus papeis. Com Campanella, sua parceria vem desde 1999, principalmente em papeis cômicos. Em O Segredo dos seus olhos, representa um homem contido, com gestos pensados e grande expressividade, principalmente do olhar. Suas interpretações são elogiadas por dar complexidade e profundidade aos personagens. Costuma interpretar personagens ordinários, atormentados por dilemas corriqueiros, o que não é diferente em O segredo dos seus olhos.

Graças às interpretações estupendas, tanto de Darín quanto dos demais protagonistas, temos que Espósito e Gómez modificam a atmosfera em cena. Os dois encenam algo como uma partida de xadrez em que o primeiro que fizer uma jogada brusca será trucidado. É um exemplo a cena do elevador em que Gómez saca a arma e o nervosismo de Espósito e Irene transbordam.

Mas a melhor química em cena é a de Espósito e Ricardo Morales, o ex-namorado sedento por justiça. Ele transmite o sentimento de tristeza pelos olhos, assim como raiva e frustração. Quando Ricardo diz a Espósito que não procure mais o assassino pois ele fizera justiça com as próprias mãos, Espósito percebe pelos olhos que há algo mais. É então que ele descobre a "prisão perpétua" de Gómez. 

Darín é um homem simples e afável que uma vez disse que "ser ator é um descanso de nós próprios. Dá-me a impressão de entrar e sair da minha vida". Ele não age como o "divo" que é e encarna em seus personagens o ícone do homem argentino, isto é, o que cada homem argentino gostaria de ser. 

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