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Um defeito de cor - Resenha

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 1 de outubro de 2024 | 08:39

Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, é uma obra monumental. Tanto por seu tamanho quanto pelo fôlego de enfrentar um tema pouco usual e ainda exercer incomum imaginação sobre a história disciplinar ou acadêmica.

A obra trata da história de Kehinde ou Luísa Gama, a mãe do abolicionista Luís Gama, por ela mesma contada, conforme a escolha narrativa da autora.

Kehinde nasceu no Daomé, em África, ibeji, isto é, gêmea de Taiwo. Na sua cultura, os gêmeos eram considerados uma dádiva sagrada e cuidados em especial. Mas, em fuga da violência em sua terra natal, que vitimou mãe e irmão, Kehinde, Taiwo, guiadas pela avó de ambas, migraram para uma cidade litorânea onde foram as três escravizadas e enviadas para o Brasil num tumbeiro.

A avó das meninas e Taiwo perderam a vida devido às terríveis condições no tumbeiro e Kehinde desembarcou sozinha no Brasil. Era o início do século XIX e a instituição escravocrata já tinha assimilado seculares modificações locais, pois vigia desde o século XVI no Brasil. Isso não quer dizer que fosse uma instituição fácil para quem nela ocupasse a posição de escravizado, mas, sim, fora modificada para sobreviver diante da ação dos sujeitos que dela faziam parte.

Ana Maria Gonçalves, por meio de Kehinde, faz uma descrição incomum da escravidão no Brasil oitocentista. Essa visão é baseada nas intensivas descobertas de historiadores e outros pesquisadores da instituição, que romperam a mitificação da escravidão como linear e composta de senhores vilões e escravizados vítimas. A autora descreve sujeitos, brancos e pretos, com variadas posições no interior da escravização.

Kehinde, por exemplo, muito pouco se adaptou à posição de dominada. Ela recusou o batismo e o nome cristão, cedo aprendeu a ler, também jovem se tornou preta de ganho, conquistou a alforria e tornou-se empresária e abastada. Isso quer dizer que a escravização comportava essas possibilidades, como forma inclusive de se manter. 

A protagonista também participou profundamente de cultos africanos, com destaque para as religiões dos orixás e dos voduns, estes últimos deuses da tradição de sua avó. Aliás, a descrição da diversidade religiosa oriunda das várias regiões de África é um ponto forte da pesquisa de Ana Maria Gonçalves. Ela também desconstrói a ideia contemporânea de que essas religiões se resumem ao culto dos orixás, discorrendo sobre variadas concepções e práticas religiosas. Nelas, prevalece o politeísmo expresso pela devoção aos ancestrais e aos fenômenos da natureza, mas a variedade é patente.

A autora também analisa a relação dos escravizados e libertos com o catolicismo no Brasil e em África, mostrando tanto este culto misturado às devoções africanas, praticado como exterioridade ou genuinamente por aqueles que se converteram.

O fato de que Kehinde e todos os outros pretos são vítimas de crueldades não fica com isso escondido. Ela sofre violência sexual e outras violências físicas, é presa quando participa da Revolta dos Malês, é discriminada por outros pretos por ser africana e não crioula, nascida no Brasil. Destaque-se que da violência sexual de seu primeiro senhor ela teve seu primeiro filho, Banjokô. Ele foi mais uma oportunidade que a autora teve de abordar a crença vodum nos abikus, crianças que nascem já com vontade de voltar para o Orum, o céu, ou seja, destinadas a morrer, a menos que muitos cuidados, inclusive rituais, fossem tomados. Taiwo também fora abiku, e assim foi explicado que não suportasse o tumbeiro.

É bom que se acentue, o conflito na instituição escravocrata não era apenas entre pretos e brancos, mas também entre pretos e pretos. Digo isso por causa do citado conflito ente africanos e crioulos no Brasil. Nada era tão óbvio quanto possa transparecer dos estudos superficiais da escravidão e da história do Brasil e mundial.

Kehinde se torna ao longo do tempo amiga de sua primeira sinhá-moça e a chama de sinhazinha por toda a vida, muito depois de se libertar. A amizade é uma de suas fortes práticas, fazendo amigos por onde andou. Gosto muito da amizade com Esméria, preta escravizada da primeira casa senhorial de que Kehinde foi cativa. Elas permaneceram amigas até a morte de Esméria, e Kehinde sempre com ela podia contar. Quem esquecerá o Fatumbi, professor das primeiras letras de Kehinde e seu amigo e referência longeva? Ele a iniciou na vida dos pretos muçulmanos em Salvador, mais uma evidência da diversidade religiosa e cultural trazida de África. Ele a ajudou em sua vida empresarial também. E assim tantos amigos e alguns amores, dentre as centenas de personagens de Ana Maria Gonçalves em sua obra.

Aliás, quanto aos amores, Kehinde viveu uma relação conjugal interétnica com o branco Alberto. Relação de portas adentro, como se dizia à época, significando não ser assumida publicamente. Foi com ele que teve seu filho Luís Gama e foi ele que posteriormente vendeu o filho para a escravidão. Homem curioso, Alberto, não um branco que explorava a sexualidade com mulheres pretas, mas um homem respeitoso e carinhoso até seus limites, por se tornou um jogador viciado e alcoólatra. Assim muitas vezes deixou Kehinde à própria sorte, que ela sabia muito bem administrar, e por causa do jogo ele entregou o próprio filho à escravidão.

Kehinde circulou pelo Brasil e assim Ana Maria Gonçalves pôde adentrar as particularidades da vida no interior da Bahia e em São Sebastião do Rio de Janeiro. Foi em Cachoeira da Bahia que ela experimentou a iniciação vodum e no Rio de Janeiro que fez a melhor descrição da capoeira. Sempre com grande sensibilidade à beleza e sem omitir o bem e o mal como interligados e por consequência naturais em qualquer prática religiosa.

Depois dessas andanças, malograda a busca do filho Luís, decidiu voltar à África, e assim Ana Maria Gonçalves descreve a pouco conhecida experiência dos "retornados": os fugidos ou libertos que voltaram das regiões escravocratas, tanto América como Europa, para a África. Nessa ocasião, a autora pela segunda vez analisa as práticas escravocratas dos próprios africanos, tantas vezes apontada tristemente para justificar a escravidão como prática capitalista. Também aborda a ideia dos retornados como comunidade mais "civilizada" do que as comunidades formadas por aqueles que permaneceram em África. O fato de que Kehinde trata os africanos nativos de "selvagens" não deve tirar ao leitor a atenção ao fato de que as culturas são diferentes e não necessariamente superiores umas às outras.

Kehinde e tantos outros chegam ricos de além-mar, ou se tornam ricos na terra-mãe. O comércio dos retornados com diversas partes do mundo ou a internacionalização de suas atividades são surpreendentes. Kehinde estabelece outra relação conjugal e concebe um casal de gêmeos que, na juventude, vão para a Europa a fim de estudar. Depois voltam também para uma vida de sucesso e o rapaz adota a poligamia, instituição africana muito criticada pelos monogâmicos que tantas vezes desrespeitam sua própria escolha sem assumir a "desobediência".

Mas Kehinde jamais desiste do filho Luís e finalmente descobre seu paradeiro. resolvendo, já muito idosa, voltar para encontrá-lo. É na viagem que dita sua história à sua fiel amiga e auxiliar (esqueci o nome), com enorme riqueza de detalhes, o que faz do livro de Ana Maria Gonçalves uma das mais extensas obras da literatura brasileira. Bem o merece a complexidade das experiências sociais que ela aborda, assim estimulando seus leitores a rejeitar o senso-comum.

Necessário é destacar a importância de um documento encontrado pela autora na ilha de Itaparica, na Bahia, certamente a longa carta de Kehinde a Luís, não tão longa quanto aquela criada no livro, pois esta se baseia em outras pesquisas da autora. O documento foi encontrado por um acaso feliz e deu o mote para a obra em tela.

Um defeito de cor não é um livro fácil de ler. Sua extensão é um dos obstáculos. Felizmente a autora usa de estratégias como anunciar brevemente o que vem depois, de forma que a gente quer sempre ver no que vai dar cada situação.

A mim me deu vontade, e vou realizá-la, de ler a obra historiográfica Orfeu de carapinha, sobre Luís Gama.


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