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Vi, ouvi, inventei

Written By Ana Claudia Gomes on sexta-feira, 30 de maio de 2025 | 07:53

Vi, ouvi, inventei

 

Apresentação e agradecimentos

 

Esta obra reúne minhas primeiras tentativas em literatura. Ou melhor, escrevi poemas na minha adolescência, mas depois abandonei essa bela inspiração para me dedicar à profissão: à história, à educação, à revisão de textos. Deixei minhas linha de fuga de lado e me concentrei nas linhas duras de viver, para citar Jules Deleuze e Felix Guatarri.

Em 2012, já a carreira estava consolidada e comecei a fazer tentativas de contos no meu blog e domínio, memoriasebiscuits.com.br . Minha maior inspiração foi João Guimarães Rosa, que exerceu profissão médica e diplomática até a maturidade, e então publicou aquela obra magnífica, fruto de anos curtindo uma visão muito particular de um certo sertão.

Não tenho a pretensão de repetir seu gênio. Mas dele me veio a paciência para esperar e as tentativas de uma escrita ritmada, meio oral, quase musical e muito mineira.

Tudo o que aqui publico é de certa forma autobiográfico. Minhas histórias aconteceram de fato, até certa medida. Eu as presenciei ou escutei em minhas andanças pelo Brasil desde a infância. E as misturei, inventei para preencher lacunas. É um livro de memórias. A memória também é inventiva.

Nasci no Paraná e daí segui para Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, Sergipe, Bahia e Rondônia. Na juventude, fixei-me com minha família em Minas Gerais, onde assumi cargos públicos e efetivos, e então as saídas foram para passear. Acrescentei à minha coleção Pará, Maranhão, Alagoas, Rio de Janeiro e São Paulo, além de me aprofundar nas montanhas, cachoeiras e cidades de Minas. Minhas histórias vêm dessa experiência.

Meu senso crítico foi formado ao longo da vida escolar e lapidado na Universidade Federal de Minas Gerais, que sonhei ardentemente frequentar e o fiz até onde possível, o Mestrado. Assim, meus textos contêm unanimemente crítica social, às vezes até com transbordamento.

Já meu gosto por textos foi apoiado e desenvolvido por professores ao longo de toda a vida. Homenageio Zuíla, do Ensino Médio em Rondônia, que primeiro incentivou minha literatura propriamente dita, para além da redação. Perdi o conto A cigarra, que escrevi para ela e com seu aval.

Preciso agradecer, com mais gratidão ainda, a meu pai que me deu acesso à escola e sempre lutou para que eu nela seguisse. Quando eu travei em tabuada, ele me ensinou seu método: escreva na parede aquilo que você não consegue aprender para ver toda hora. E só assim aprendi 7x8. Ele sentiu meu sucesso escolar como seu próprio, pois vinha do analfabetismo e contra ele lutou. Axé, pai!

Meu grande apoiador na poesia adolescente, foi Francisco Campos. Estudávamos com grande afinco, mas ainda nos sobrava tempo para escrever livremente nos bancos escolares. E trocávamos nossos textos para termos leitor e para nos influenciarmos. Até hoje tenho textos dele, com caprichada e estilosa letra em tinta azul, nos meus guardados. Ele era muito, muito superior a mim, mas tinha amor. Axé, Francisco! Minhas primeiras audições da boa música secular foram com você, aficcionado do Santana.

Meus psicólogos, sem eles eu não apresentaria minha escrita ao público. Conceição, Ana Maria, Sara, Rivelli e Fernando, guias na busca de Eros. Rosinete, sem você eu não saberia que Eros são vários, pois somos sujeitos infixos, e a literatura é só uma pessoa em mim.

Ao povo de Betim, que me sustentou mesmo nas adversidades, minha gratidão também.

 

A pensionista

 

 Romário estava paciente terminal em grande hospital. Viúvo, sentia a casa vazia, definhava, desenvolveu doença degenerativa. Internado, os filhos correndo pelas próprias vidas, contou mais com uma amiga da família para lhe fazer companhia, acalmá-lo diante das agulhas, dos duros efeitos da quimio. Os vizinhos de leito admiravam o desvelo da amiga, sua disponibilidade.
O hospital precisava documentos, amiga providenciava, inclusive comprovante de endereço, não o de Romário, mas o seu próprio.
Romário desaparecia a cor, os cabelos, as reservas de gordura, e se passaram longos meses. Os filhos corriam, corriam pelas próprias vidas e vinham aos horários de visitas, agoniados, saíam para chorar, às vezes vomitar.
Veio o tempo, inexorável, o tempo de acabar. No velório, amiga providenciava funerária, papeis, até pagar pagou. E chorava poucas lágrimas junto ao caixão, discreta, o tempo todo. Ninguém lhe estranhava a legitimidade.
Dia seguinte, veio o espólio. O inventário ia ser pauleira, muitas dívidas, muitos bens sem registro. Os filhos deram um tempo de correr pela vida de sempre, correram à casa do pai, outrora tão vazia, agora tão cheia de objetos, inclusive ancestrais. Isso é meu, isso vai pro antiquário, puxa-que-puxa, a casa ficou vazia de fato.
Súbito liga uma voz estranha ao advogado da família. Nobre colega causídico, quanta satisfação em falar-lhe pela primeira vez. Sou o representante legal da viúva.
Viúva? Estranhou o advogado da família. Ao que me consta, o Sr. Romário é que era viúvo, morreu de tristeza, nem quis namorar.
De fato, ilustríssimo colega, o Sr. Romário sentiu muito a morte da esposa, segundo minha cliente uma abnegada mulher. Mas minha cliente era sua concubina, se é que me entende, e diante da doença definitiva, o Sr. Romário voltou a aceitar sua companhia e seu carinho. Reuni sobejas provas, tanto do relacionamento paralelo ao casamento, dos pagamentos efetuados pelo Sr. Romário do aluguel para minha cliente, de ela ter assumido compromissos e apresentado a documentação, sempre que necessário, ao hospital.
O advogado da família quedou boquiaberto quando ouviu: de modo que minha cliente reivindica sua parte no espólio, metade, como sabe o senhor, e sua parte na pensão.
O contraditório no litígio judicial foi ferrenho, mas não deu outra. A amiga teve ganho de causa, depois de haver pagado procedimentos para o inventário. O filho menor de Romário divide sua pensão com a amiga.
Os descendentes juram de pés juntos que a amiga é uma estelionatária e todas as provas forjadas. Sabe lá. O que é não ter e ter que ter pra dar.

 

Passeio no Petrô

 

Para entrar e fruir o Petrô, só escoltada por algum morador. O Petrô era um subúrbio cuja comunidade tomara o poder. Nem o Estado nem os Estados paralelos haviam logrado controlar o território. Em consequência disso, os moradores de outros subúrbios, do centro da cidade, do estado e do país tinham extrema curiosidade em relação ao Petrô e sua experiência era desconhecida de qualquer não-morador.

Maralinda morava na vizinhança do Petrô. Recém-formada em jornalismo, já distribuíra currículos para jornais da região e do estado, inclusive os online, todos com foto, conforme exigido, jamais sendo chamada sequer para uma entrevista. Não enviara currículos para emissoras de rádio e televisão porque tinha como ponto forte a escrita. Desconfiava de que sua aparência e endereço contribuíam para que os veículos de comunicação descartassem seus currículos. Preta retinta e moradora dos arredores do Petrô, podia ser que não fosse detentora dos requisitos desejados por tais veículos. Sabia-se que os órgãos de comunicação praticavam um conceito de aparência extremamente racista e que a sociedade em geral, mas principalmente seus governantes temiam o espraiamento da experiência do Petrô.

Um dia, Maralinda teve uma ideia mirabolante. Se conseguisse adentrar o Petrô e anunciasse tal furo de reportagem aos órgãos de comunicação, exigindo com preço para sua publicação um contrato bem amarrado de cinco anos no jornal que lhe oferecesse as melhores condições, certamente conseguiria um emprego. Seria uma chance de mostrar suas extraordinárias habilidades, reveladas na graduação e extremamente admiradas pelos professores e colegas. Não tinha dúvidas: seria disputada no mercado.

Pôs-se a matutar, a Maralinda. Quem poderia facultar-lhe o acesso ao Petrô? Consultou discretamente seus vizinhos, que sempre a tiravam de cabeça e ainda expressavam um terror diante da ideia. O Petrô era tido como violento, inclusive na tomada do território à sociedade envolvente houvera enfrentamentos sangrentos com a polícia.

Foi não mais que de repente que se lembrou de seu antigo Professor do Ensino Fundamental, que se apresentava alegremente como Tibeiça, dados os lábios extremamente grossos, dentre as muitas características de seu biotipo afrodescendente. Tibeiça morava no Petrô e era das raras pessoas que trabalhavam fora dos limites da comunidade. Esta era autossustentável, garantindo ocupação a toda a sua população, com moeda própria e importação de produtos que não produzia. 

Tibeiça era um intelectual da comunidade, filho de um líder referência do Petrô. Ele ensinava na universidade da comunidade, mas achava que podia ensinar alguns princípios da autonomia comunitária aos estudantes do entorno. Maralinda fora sua estudante e aprendera muita coisa nesta perspectiva.

Tibeiça chegou a diretor da escola e a revolucionou, com horta que enriquecia a merenda, criação de galinhas, espaço zen para fruição na hora do recreio - um jardim com redes e cadeira confortáveis, tão bonito que nem de longe era alcançado por qualquer praça da região. A biblioteca da escola tornou-se um centro cultural e laboratórios de todas as ciências foram inaugurados. Tudo isso com captação de recursos nas instâncias estaduais e estaduais e grande irritação da instância municipal que conhecia seus objetivos.

Uma perseguição sem tréguas abateu-se sobre Tibeiça. Extremamente articulado ao sindicato dos professores, aderiu a uma greve e foi exonerado de seu cargo, considerado de confiança do Prefeito. Tibeiça entrou em embates judiciais para reaver seu cargo, sem sucesso até o momento.

Eureka, pensou Maralinda. Tibeiça já quase não saía do Petrô, afastado de seu cargo de Professor que estava, em processo administrativo disciplinar. Maralinda começou a perguntar a um e a outro, sempre sem perspectivas, e assim permaneceu durante meses de desemprego. Mas um dia recebeu um telefonema afobado: - Maralinda, o Professor acabou de sair do Petrô para ir à Prefeitura! Maralinda desabalou para a entrada do subúrbio, guardando alguma distância, já que o acesso era fortemente vigiado.

Aguardou horas. De repente aponta Tibeiça na curva de um beco e Maralinda espera tremendo. - Professor! Deu um passo à frente ela quando chegava o Professor. Tibeiça não a esquecera e abriu largo sorrisso: - Maralinda!

Ela se aproximou, recebeu um caloroso abraço e informou: - Há muito espero para lhe falar. E desfiou o rosário.

Tibeiça ouviu tudo circunspecto e respondeu: - Nunca autorizamos ninguém a entrar. Mas acho que uma divulgação da experiência da comunidade pode interessar a parte da população e a alguns líderes, como forma de combater os estereótipos construídos sobre a comunidade. Eu vou sondar. Anotou o telefone de Maralinda no celular, que também tinha operadoras próprias no Petrô.

Muitos dias transcorrerem e Maralinda oscilava entre a esperança e o desalento. Até que Tibeiça ligou: - Maralinda, eu consegui convencer algumas lideranças e pessoas que vivem no caminho que liga a entrada do Petrô até o centro. Você não terá uma visão muito ampla da vida na comunidade, mas o suficiente para seu furo de reportagem.

Maralinda exultou. Marcou encontro no dia seguinte com Tibeiça nas proximidades da entrada do Petrô.

Era manhã do dia combinado. Tibeiça, antes de fazer a entrada triunfal com Maralinda, alertou: - Você não pode dar nenhum passo em falso, inclusive só poderá fotografar uma área e só conversar com as pessoas que eu lhe indicar, que são as que concordaram em falar.

Assim que entraram no Petrô, havia um longo beco com numerosas curvas e casas pequenas com vários andares, porque a densidade demográfica era muito alta e a comunidade não tinha intenções de expansão territorial. Inclusive, segundo Tibeiça, havia discussões comunitárias sobre vários assuntos, inclusive controle da natalidade voluntário, uma vez que a comunidade ainda praticava muitos filhos, como era costume até a década em que se emancipou.

Os andares térreos dos pequenos prédios exibiam portas abertas, às quais assomavam rapazes retintos como Maralinda. Tibeiça explicou que eram os comerciantes de drogas, já que o Petrô tinha seu uso liberado. Eles também tinham o controle da entrada labiríntica, de forma que em caso de alguém furar a barreira militarizada das fronteiras, encontraria a continuidade das barreiras. Os rapazes olhavam com desconfiança para Maralinda mas não tiveram nenhuma atitude contrária à sua entrada.

Foi ao final desse corredor vigiado que Maralinda viveu sua primeira experiência fantástica no Petrô: começou a pisar em lama aquosa e sentia caranguejos sob seus pés, exatamente como num mangue. Mas seus pés não afundavam e ela andava perfeitamente sobre a lama, como dizia a tradição cristã que fizera Jesus por sobre as águas. O movimento dos caranguejos era sentido com intensidade por sob seus pés. Foi quando Tibeiça informou: - Essa espécie de mangue circunda toda a comunidade e ninguém que não seja habitante do Petrô conseguiria atravessá-lo sem afundar. Felizmente ninguém com essa característica chegou até aqui e nem sequer forçou as barreiras policiais. Maralinda andava naquele solo macio maravilhada.

Pouco depois desse mangue diferente, começavam a aparecer casas muito juntas, mas não sombrias e escuras como as casas dos comerciantes de drogas. Tibeiça apontou uma casa vermelha, surpreendentemente grande, com dois andares, e informou: essa é a bi-casa do meu pai. Maralinda olhou seus contornos como quem via um grande palácio, mas se tratava de uma casa simples e ouviu Tibeiça de novo: - Não há grande diferença entre as moradias dos líderes e as da população em geral. A residência de meu pai foi reformada voluntariamente por populares que têm grande admiração por sua participação no programa político de emancipação e organização do Petrô. Meu pai era um empresário de sucesso no Petrô antes, seu acesso a recursos materiais caiu muito, sem que ele ou minha mãe se importassem, enquanto toda a população melhorou de vida, não havendo miseráveis nem pobres.

Tibeiça apontou sua casa, semelhante às demais, porém pequena, pois ele ainda não constituíra família. Maralinda ali bebeu água e descansou. Então começariam os trabalhos de campo. 

Tibeiça convidou a ex-estudante para conhecer uma das casas comerciais mais tradicionais do Petrô: um supermercado apertado e abarrotado, onde a moeda de troca era chá. Com folhas de chá frescas ou desidratadas, era possível comprar qualquer mercadoria no local. Mais ao fundo do supermercado, Maralinda viu que havia uma espécie de boate em que vários clientes bailavam enquanto tomavam chá. A jornalista ficou imaginando como os comerciantes proprietários escoariam tanto chá, mas começara a perceber que o Petrô tinha ambientes e práticas fantásticas, como só na literatura.

Escolheu a seu bel-prazer clientes do supermercado para entrevistar. Direcionou as entrevistas para saber como funcionava a economia do Petrô e percebeu a adoção de alguns traços ditos comunistas que permitiam uma desigualdade mínima entre os habitantes, e também traços de economia de mercado que mantinham a produtividade e a circulação de mercadorias em nível alto. Fotografou o inverossímil ambiente, especialmente uma menina que se esgueirava para baixo das prateleiras, com carinha muito faceira e bonita. Observou que havia também outras crianças no recinto, à vontade, não pareciam acompanhadas de adultos e em segurança.

Tibeiça informou que não tinha autorização para levá-la a outros espaços do Petrô e perguntou se o que vira e ouvira era suficiente para obter o furo de reportagem. Ela aquiesceu e intimamente teve vontade de pedir para permanecer no Petrô. Mas pensou que podia perfeitamente tentar voltar depois de dar uma lição aos órgãos jornalísticos da sociedade envolvente.


Primeiro caso com irmã de caridade


Helena e Rosa conversavam sentadas no telhado da casinha feita com troncos de madeira no parque de diversões da vila. Ali moravam com suas famílias, a de Helena vinda de Minas e a de Rosa vinda do Pará. Eram adolescentes, todas as tardes conversavam sobre estudos, namoros, causos da vida, enquanto aquele glorioso sol se punha por trás da mata.

Helena perguntou: mas você nunca sofreu mesmo racismo? Rosa fez cara séria e respondeu: sofri, sim! Andei me lembrando esses dias depois de você me perguntar! Na minha primeira escola, para onde fui levada pela patroa do meu pai, uma irmã de caridade dava aula de religião. Havia aquele livro, A Bonequinha Preta, e ela me apelidou de bonequinha preta, me chamava de neguinha, me dava beliscões. Parece que ela não se conformava das meninas mais ricas da escola viverem em volta de mim! Era branca, com umas manchas escuras no rosto. Muito feia... 

Um dia, ela me beliscou, não aguentei não, cuspi na cara dela. A diretora, justamente a patroa do meu pai, chamou minha mãe à escola, para reunião com a professora, mas também chamou minhas colegas. Então elas contaram o que a irmã fazia comigo. Ela foi transferida para um trabalho administrativo na escola... E Rosa riu.

Helena não se deu por vencida: eu também tenho o meu primeiro caso com irmã de caridade! Fiz o pré e o primeiro ano numa escola de freiras, no sul. No pré, tudo bem, apesar que toda sexta-feira a gente caminhava até uma gruta para rezar a Nossa Senhora, e eu não sabia rezar, pois era evangélica. Ficava num medo da professora falar alguma coisa! Nunca falou.

Mas no primeiro ano, o bicho pegou. Minha mãe preparou meu uniforme, conga azul, meia branca, saia plissada azul e blusa branca. E um poncho de tricô vermelho, pois sempre fazia muito frio. Veio a irmã diretora conferir a gente na fila de entrada, e deu um escândalo. Onde já se viu uma pessoa com poncho vermelho, numa escola onde o uniforme é azul e branco? Não vai voltar pra casa hoje, mas amanhã só entra com a mãe.

Cheguei em casa aterrorizada, disse Helena. Falei para minha mãe que não voltava à escola. Minha mãe era uma italianinha brava, viu? No dia seguinte disse: passa na minha frente e vamos à escola. Chegou lá, explicou à diretora, muito altiva, que já tinha investido todos os recursos disponíveis no mês para comprar meu uniforme e material. Não dava para fazer um agasalho azul naquele mês. Pronto. Eu virei tipo o ET do poncho vermelho na escola. Todo mundo de azul e branco.

Rosa fez menção de falar, tipo, o meu caso é muito mais contundente que o seu. Mas Helena mal respirou: também tenho o meu primeiro caso com professora de religião. Ela foi minha professora na quinta série. Poucos dias depois do início das aulas, apontou o dedo para mim e perguntou: quem criou a sua religião?

Titubeei. Respirei fundo, sem convicção, e respondi: Cristo, ora! Não, disse a professora. Cristo criou a Católica. A Protestante foi criada por Martinho Lutero!

Fiquei arrasada. Mal podia esperar o dia da Escola Dominical para perguntar à minha professora de lá. Ela, muito carinhosa e cuidadosamente, explicou: Cristo não criou nenhuma religião, nem mesmo a Católica. E sim, foi Martinho Lutero quem criou a Igreja Protestante. Mas nós ainda somos protestantes pentecostais! Houve outros fundadores!

Fiquei confusa e resolvi ler a Bíblia toda.

Rosa levou um susto: você leu a Bíblia toda? Sim, disse Helena, eu e meus dois paquerinhas. A gente leu mesmo porque estava paquerando. Foi tipo uma competição. 

Mas você leu toda? Duvidou Rosa. É, pra te falar a verdade, disse Helena, teve umas partes que eu não entendi de jeito nenhum. Fica como seu eu não tivesse lido. Como o livro de Juízes. Deus nos acuda! Por outro lado, adorei os Cantares de Salomão...

Helena também era evangélica. Balançou a cabeça, um tanto absorta, afirmativamente. Você pode ter contado mais casos do que eu. Mas o meu caso com racismo e com professora de religião é mais contundente que os seus.

 

A tormenta

 

Era 10 de outubro de 1971 e, ali pela Baixada do São Cristóvão esperava-se pelo clássico Galo x Cruzeiro. Mãe terminara de fazer o frango ensopado de domingo quando pai chamou para ver: umas nuvens cinzentas vindas dos lados da Contagem! Virou-se um pouco e disse: vejam, não tem nada pros lados de Betim. Escondam-se debaixo da mesa de jacarandá. Nós todos nos escondemos. 

Pai avisou que ia rezar apenas três cantos da casa, ele que era famoso rezadeiro e benzedor. Mandou que acompanhássemos as rezas.

Chegou um forte vento, arrancou todo o telhado de barro. Sentimos terror. Veio mais uma rajada de vento e chuva, a casa de tijolinhos começou a ruir, abrindo uma brecha no canto que pai não rezara. Um de nossos irmãos foi atingido ao sair de sob a mesa para escaparmos rápido da casa pela fresta aberta.

Olhamos, havia mais de oitenta casas devastadas em toda a nossa Baixada e até pros lados da Santa Cruz. Apenas uma casa não havia caído até onde nossa vista alcançava. A casinha de sapé dos surdos.

Dali pra frente, os rapazes da família surda sempre nos zoavam. A casinha mais simples e pobre fora justamente a que sobrevivera ao temporal, redemoinho, furacão, o que fosse.

Ficamos meses de favor na vizinhança, até reconstruirmos nossa casa com material que a Prefeitura forneceu. A mão-de-obra não foi paga, foi a nossa mesmo, nas horas de folga.

 

 A pequena vaca


Rosamira estava um stress só. De volta à casa no ônibus, após pesadas compras, sentia sono e lamentava a recorrente insônia das últimas semanas. Muitas angústias no trabalho a faziam recordar toda uma história de conflitos nas empresas onde trabalhou. Por que insisto em inventar tanto, minha Deusa? Por que acredito nesta falácia que me repetem desde a infância, de que sou inteligente? De que serve ser inteligente mesmo, se todos parecem preferir pessoas boas e simpáticas?

Olhava suas mãos calejadas, seus negros braços com tantas cicatrizes, as numerosas sacolas ao chão. O ônibus cheio e os cheiros. Ah, que bom que estaria em casa, breve. Suspirou.

Da parada do ônibus até em casa, resfolegava e pensava aliviar-se do peso, tomar um banho no cubículo e deitar na rede apertada na pequena área de serviço, junto às flores.

Abriu a porta, estacou. A casa estava cheia de gente! Viu primeiro suas colegas de trabalho e se perguntou como haveriam entrado ali. Argélia, a loira amada por todos, funcionária do mês quase toda vez, tinha os olhos injetados e, à frente de todas, dirigiu-se a Rosamira. O que te deu na cabeça de apresentar ao chefe maneiras de produzir mais e melhores parafusos? Já não temos trabalho o bastante? As colegas pareciam um bloco e vinham passo-a-passo na direção de Rosamira, como prontas a lhe dar uma sova. Djenane, a linda mulata que seduzia toda a chefia, parecia a mais ameaçadora, embora mignon e sempre de voz delicada. Rosamira esperou o pior.

Mas desviou os olhos para os fundos da casa, onde estava a sonhada rede e, de relance, viu que a casa estava uma bagunça. Parecia ter sido revirada por alguém que quisesse encontrar algo. Foi quando avistou Letícia, a garota ébano a quem amava. Rosamira, num zaz, passou ao largo das colegas, abraçou Letícia e a beijou vorazmente. E fez amor com ela ali mesmo, para o pasmo e paradeiro de toda a gente presente, inclusive a pequena filha de Letícia.

Foi como se a cena de um filme congelasse diante de um controle remoto. Rosamira olhou Cecília, a filhinha de Letícia, que exibia tristes olhos. Puxa, pensou Rosamira, eu me excedi mais uma vez...

Virou-se para o bloco. Estavam todas estateladas como estátuas ao sol. Mas então avistou curiosa cena: sobre sua pia de cozinha, cheia de pratos e restos de farta comida, como se ali houvesse havido um banquete, estava uma pequena vaca branca. Do tamanho de um cachorrinho.

Aproximou-se. A vaquinha tentava alcançar a comida que estava além do bojo da pia. Compadeceu-se Rosamira. Pegou de uma tigela e serviu leite de sua sacola de compras à vaca, que resistiu. Seu olhar estava fixo nos brócolis e cenouras distantes de seu alcance. Rosamira exasperou-se. Onde já se viu vaca querer comida de gente? Recolheu os pratos e despejou a comida na lixeira.

Virou-se cento e oitenta graus e só então avistou Jane e sua nova namorada. Jane estava linda! Uma pele lisa e jambo, nem parecia que se haviam passado quase três décadas. Jane fora sua colega na frustrada tentativa de cursar uma universidade. Rosamira não conseguira conciliar o trabalho, onde inventava, com tantos textos.

Olhou Jane e sorriu. A ex-colega era, já na universidade, atriz, elegante, ética, e ajudava Rosamira emprestando as cópias xerográficas dos lindos e numerosos textos. Rosamira andou na direção de Jane e pôde ver de perto o terno e acolhedor olhar da namorada.

Jane e a moça desconhecida enlaçaram Rosamira com os braços e aquilo ali parecia berço, útero, sei lá. Então Jane segurou a mão de Rosamira e, com a outra mão, indicou todo o interior da caótica casa: por que você perde tempo com isso tudo, Rosa? Vamos para a universidade!

 

Qualquer um chorava

 

Uma vez, Rose deu de cara com a impossibilidade de um amor romântico. Isso não foi em um instante, mas ao longo de meses. Porém, foi mesmo em um instante que ela viu tal impossibilidade cintilar. Foi quando Wando lhe disse: eu tenho fotos maravilhosas desse outro amor que tive, mas não posso postar. Compõem o arquivo morto.

Morto. Morto. Morto.

Aquilo ecoou, ecoou. E parecia mesmo ter sido balbuciado em voz grave, de homem, do longínquo fundo de um túmulo.

Rose ficou em estado de choque. Ficou em silêncio durante toda a viagem. Wando dizia alguma curta frase, uma pergunta, um comentário, de vez em quando. E Rose respondia com voz cada vez mais fugidia, mais monossilábica, mais sumidamente feminina.

Depois dali, tudo o que lhe parecera grande naquele amor, impetuoso, perspectivo, passou a lhe parecer uma pálida nuvem rosa e laranja. Que subia cada vez mais alto aos céus, e Rose tentava segurá-la com um quase imperceptível fio, mas ela desaparecia de seu olhar, menor, menor, como nave que some para o vácuo.

A cada novo encontro que Rose queria muito e Wando também parecia querer, novas palavras cintilavam e Rose procurava a nuvem da qual sequer rastro restava. Frio. Enigmático. Calado. Morto. Cruel. Ferido. Encapsulado. Um sem número de palavras masculinas.

E milhares de vezes, que gostoso, amor. Que gostoso, amor...

Quando Wando ligava, Rose não mais conseguia falar desatadamente como antes porque não havia fala de volta. Silêncios se alongavam na linha e Wando dizia: fale. Eu gosto de ouvi-la falar.

Numa noite insone, ela imaginou que um dia ele lhe perguntasse: por que você não conversa mais comigo? Imaginou também infinitas possibilidades de respostas: não sei conversar com você; não consigo conversar com você. Eu gosto de conversar alegremente e meus monólogos faço sozinha, em voz alta.

No começo, eu estava certa de vislumbrar-lhe a alma em seu olhar. Mas aos poucos, você me parecia cada vez menos alma. Travado. Incapaz de um palavrão. De fazer diferente. De fazer crescer. E eu não me sentia mais à vontade para ser eu diante de você.

Imaginou que Wando então perguntasse, sempre querendo perscrutá-la, mas sem nunca dar feedback: o que você não conseguia ser diante de mim? Ao que Rose quereria responder aos borbotões, mas sabia já não ser mais capaz: alegre, vivaz, criativa, sonhadora, rebelde, inconstante, vulcânica, vasta, emotiva, líquida, desejosa, irônica, debochada, culta, política, morena, pecaminosa, poderosa, sincera, tímida, dissimulada, jogadora, carinhosa, generosa, controversa, labiríntica, sedenta, faminta, aquela que arde.

E tudo isso ela ainda era. Era mais que nunca. Mais agora.

Então Wando perguntaria, mas apenas o Wando imaginário: e esse nosso sexo intenso? Aos poucos desapareceria, respondeu já Rose à própria noite. Já que se eu não puder ver-lhe ou imaginar-lhe a alma, não há tesão. O tesão era pela pessoa imaginada e desejada e querida. Não pela carapaça inexpugnável.

Ou então, por outro caminho, Wando perguntaria de novo: por que você não conversa mais comigo? Ao que Rose responderia, mais lacunar: sua postura, sua atitude. Distante. Mental. Algo fora da encantadora finitude e mortalidade que me caracteriza. Sem estofo. Sem explosão.

Você não é o amor que me expande e me liberta. É o amor que me destrói. Que me quer submissa, disponível sempre aos mesmos horários e às mesmas cerimônias. Sempre às mesmas perguntas e respostas formais. Com menos vinho, com menos guloseimas, com menos músicas. Que me deixa à cama sem forças para as incontáveis coisas às quais a vida me chama.

Naquela mais uma estendida insônia, que Rose sabia valorizar, pois nela caminhava léguas, milhas, anos-luz, ela também imaginou dizer: eu tenho certeza de que você tem uma alma. Não a que eu imaginei ou gostaria de tocar, e por isso o compreendo e o liberto.

Então Rose foi navegar em rede social e leu: não seguir a bula de quem é comprimido. Riu, vivaz, e decretou: arquivo morto, jamais. Postou a foto.

 

Estreia

 

Seus amigos armaram armadilha para Mary. Eles, dois cineastas, acreditavam que ela funcionaria bem como atriz. Mas não lhe disseram pois sabiam que ela fugiria.

Andrei a convidou: "vou fazer um novo filme e gostaria que você me ajudasse. As filmagens costumam durar horas e você poderia fazer umas comidas para oferecermos ao elenco e à produção. Pode ser patrocinadora?"

Mary amava Andrei como se ama a um amigo. Aceitou.

Charles a queria convidar para um longa. Então reforçou o convite para a produção de Andrei, dizendo que levaria um livro para que Mary o analisasse como especialista em literatura. E emprestou seus equipamentos, também operando a câmera principal.

O roteiro foi discutido por poucas pessoas e não havia texto. Mary não se preocupou com isso pois não pensava participar. Apenas teria a oportunidade de ver as filmagens de um diretor reconhecido como genial em vários países. Seu grande amigo.

Na data marcada, teve uma crise de ansiedade. Não gostava de cozinhar e não sabia fazê-lo muito bem. Aceitou o convite por amor.

Cerca da hora marcada para o início dos trabalhos, foi ao supermercado para comprar os ingredientes. Entrou em cólicas. O supermercado não tinha banheiro para clientes, mas o shopping ao lado tinha-o.

Foi a custo que chegou à área dos banheiros e se dirigiu apressada à porta. Mas havia que pagar a entrada primeiro. Olhou o caixa, longa fila. A caminho dela, não suportou e fez cocô na roupa, tendo o primeiro petardo saltado da calcinha, atravessado o largo vestido e atingido o asséptico piso.

Mary continuou andando rumo à fila incólume, olhando pelo rabo de olho se alguém percebera.

Logo depois, um cheiro fétido invadiu as redondezas, pondo-se as pessoas a comentar. Felizmente, duas senhoras que passavam pelo corredor a salvaram: "Veja! Algum cachorro fez cocô e o dono não recolheu. Que absurdo! Vamos chamar a limpeza".

A limpeza fez rápido seu papel. O cheiro permaneceu mais um tempo e as pessoas em volta enjoavam. Mary continuava fazendo cocô, agora pastoso, enchendo a calcinha. Desesperada. Podia não dar tempo.

Adquirido finalmente o ticket, mal chegou ao cubículo sanitário. E foi como se suas entranhas se esvaíssem. Quanto mais dava descarga, mais cólicas a empurravam para fora.

Foi-se longo tempo até que Mary se sentisse melhor. Estava atrasada. A higienização foi difícil. Frágil, dirigiu-se ao local da produção, depois de voltar lentamente ao supermercado e comprar fartas guloseimas.

Já na cozinha, depois de mais uma visita ao banheiro para se lavar no bidê, concentrou-se na comida. Silenciosa, séria, sentindo-se vazia.

Charles a ela se dedicou com conversa mansa e culta. Com informações sobre os desejos para seu próprio filme. Sedutor. "Você gosta de cozinhar?" "Não. Mas o amor tem dessas coisas".

Depois de servir pães, pastas naturebas e castanhas, sentou-se, aliviada. Foi quando Andrei anunciou o início das filmagens e anunciou a Mary: "Brigitte trouxe figurinos para você testar". "Não! Eu não vou participar!"

Andrei fez cara de intensa preocupação: "Mas eu preciso! Você é a mulher negra do elenco, calcado na diversidade fenotípica e cultural! É apenas uma figuração, você nada terá que falar."

Mary não pôde resistir a essa necessidade ideológica que compartilhava, ainda mais quando Charles mansamente disse: "Preciso vê-la diante das câmeras para nosso projeto em comum!"

Audrey fez-lhe a maquiagem e lhe emprestou roupas pretas, montou turbante.

Mary foi posta à frente do elenco e precisava manter os olhos na protagonista. Seu rosto sério e silencioso ficaram belos. A fragilidade física estava impressa na tristeza do olhar.

Ficou lindo o filme. Após, Charles convidou: "Quero-a para minha protagonista".

Mary não titubeou. Cantou à capela, desafinada, para grande encanto do alternativo elenco e seus produtores. Embora não tivesse entendido nada do que seria o filme. Este, pronto, ficou belíssimo. E ela não teve público senão entre os iniciados. Seus amigos ficaram chocados com o resultado, onde Brigitte era santa e puta. E viciada, mas suave e pura.

Mary fugiu assim que pôde e foi atacada de uma enxaqueca terrível, até que vomitou copiosamente sua própria comida.

Melhorou. Estava descabaçada. Adentrou serena o projeto do longa, crendo-se capaz. Brilhou e foi premiada, junto com Charles. Mas manteve o horror da estreia e, antes da segunda, deprimiu seriamente. Arrastou-se à sala de exibição e concebeu um conto musical. Aguardou o próximo convite. Pensa que a cena do shopping devia ser remontada e filmada. Não teria problema em produzir as cólicas.

 

Neném

 

É curioso esse apelido, Neném. Tem gente que o leva por toda a vida.
Não soube o nome do seu amigo Neném. Embora fosse jovem quando ele a via descendo a rua com pressa e pedia ao motorista dos ônibus que a esperassem. E depois, ela mais próspera,  consertasse os seus pneus furados. Né nada não, respondia quando ela perguntava o preço. Mas ela lhe dava umas moedas para o café.
Nunca conversaram mais que isso. E todo ano, a cesta de Natal da mulher rica era para ele.
Passaram vinte e tantos anos. Ela voltara ao uso do transporte coletivo, porque tudo pertinho, mas Neném não retardava mais os motoristas. Ela saía e chegava, ele estava sentado na esquina, uma pinga, uma cervejinha. Viera a especulação imobiliária, trazida por um shopping das redondezas, o dono do terreno onde fora seu pequeno negócio ergueu um muro. É um mistério como Neném não obteve usucapião. Talvez por serem caros os advogados.
Aos poucos, outros companheiros de copo, fumo, pedra, passaram a lhe fazer companhia na calçada, durante todo o dia, cada dia. Ela passava a horas diversas, dava bom dia, boa tarde. Neném agora ficava de banho tomado, cabelos molhados de manhã, cacheados ao longo do dia. Grisalhos ao longo do tempo.
Permanecia corpulento, ao contrário de seus vários companheiros e companheiras, e seus olhos ainda brilhavam, dirigidos ao muro onde outrora dirigira seu autônomo trabalho. Mas eram tristes sim.
Ontem ela o encontrei pela manhã e repetiu bom dia. À noite, seu vizinho contou que Neném falecera. Dia seguinte, ela passou pela esquina, manhãzinha, os companheiros estavam lá. Mas à tarde a esquina estava vazia. Neném tivera o seu funeral.
Os compromissos do dia não permitiram que ela comparecesse. Comprou uma rosa amarela pois ouvira que são boas para presentear homens. E a depositou junto ao muro que devagarinho matou Neném. Ali é que jaz sua memória.
  

O primeiro porre


Contam minha tia Rai e minha mãe, Conceição que, quando crianças, formavam um par de irmãs companheiras e brincavam de comadres. Como elas dizem, regulavam idade.
Tia Rai era da pá-virada, a líder. Minha mãe se esmerava em não desobedecer os pais. Mas era normal experimentarem vivências fora do cotidiano, especialmente com mantimentos escassos para aquela família.
Uma dia resolveram brincar de comadres, fazendo uma bebidinha especial. Misturaram água, açúcar e um pouquinho do álcool, bem guardado no armário de minha avó.
Ao primeiro gole, pareceu-lhes uma delícia. Mas os irmãos Raimundo e Joaquim, que também regulavam idade e estavam em casa enquanto os irmãos mais velhos trabalhavam, também queriam brincar de compadres.
Tia Rai, esperta, preparou uma água com sal para os irmãos e, durante a brincadeira, ela e minha mãe experimentavam sua bebida dos deuses e fingiam: nossa, comadre, mas que água salgada! E assim enganavam os irmãos, que muito reclamaram do sal na água.
Não deu outra. As duas ficaram de porre.
Riam a não mais poder, dançavam... Havia uma cava, uma semi-caverna, nas proximidades da casa, de onde rolavam uma depois da outra. Foi um tendepá.
Tia Lia, a irmã mais velha, chegou do trabalho e viu aquela anarquia. Desconfiou imediatamente. Foi ao armário de minha avó e viu que meio frasco do álcool se fora. Avisou logo que contaria à minha avó e que as comadres apanhariam.
Minha mãe já se recolheu em casa, como sempre fazia à ameaça de apanhar. Preferia acabar logo com aquilo. Tia Rai preferia se esconder nos arbustos próximos e adiar ao máximo, para ver se meus avós desistiam da coça.
Mas foi como sempre. Minha avó chegou, recebeu os relatos e aplicou o corretivo em minha mãe. Tia Rai, só muito depois da resistência. Mas tomou seu corretivo também.
A surra ficou como lembrança comum. O que as faz rir mesmo, até não mais poder, é o  porre de água salgada para os irmãos e de diversão para elas mesmas. Nos encontros de família, essa história está entre as mais relatadas, sempre com novos detalhes alegres.
Tia Lia não gosta de ter lembrado seu papel de irmã quase mãe. E eu fico pensando como é que ainda não tomei um porre na vida...

 

 Arqueologia das vilas operárias


Já tive a oportunidade, diria privilégio, de viver em duas vilas construídas especificamente para abrigar operários enquanto se construíam obras de infraestrutura no Brasil.
Na primeira delas, vivi a primeira infância. Foi onde nasceu meu irmão e onde começaram minhas memórias. Suas casas de madeira eram confortáveis, pintadas por fora em verde claro e minha casa tinha um porão. Porão das minhas brincadeiras com crianças vizinhas, para onde arrastava meu saco de brinquedos. Ao fundo, um imenso vale verde, em cujo berço corria um límpido rio com seus patos. No quintal da minha casa, uma figueira, da qual minha mãe colhia os frutos para o nosso deleite in natura ou em deliciosos doces que até hoje agradam meu pai. Dos restinhos de doses de cachaça, que meu pai me apresentou. Do puxadinho construído por meus pais, para terem uma grande cozinha mineira.
De lá tenho minha primeira fotografia em cores. A lembrança de minha primeira sombrinha, conquistada por uma pirraça. Que me acompanhou até que eu declamasse "A menina da sombrinha" na igreja, eu que sempre gostei de um púlpito ou palco. Até hoje temos notícias de algumas pessoas que lá viveram conosco, inclusive meus padrinhos Perônico.
Na segunda dessas vilas, vivi a adolescência. Tempos de conflitos para a construção da identidade e de caras memórias. O único templo, onde se reuniam as igrejas católicas e evangélicas, com agenda negociada. Meus primeiros namorados. A escola onde fui uma das alunas pioneiras e onde um professor me libertou de sucessivos fracassos em matemática. O clube, onde dançávamos aos sábados e onde se apresentaram ícones musicais do tempo, inclusive Gretchen e Magal, para escândalo dos conservadores e delírio dos progressistas.
As casas eram também confortáveis, em madeira envernizada. Em cada uma delas, uma varanda em cimento vermelho encerado. Ali onde meu irmão e eu brincávamos com nosso primeiro cachorrinho, o pequinês Rhodes, que era mesmo de meu irmão, mas do qual sugeri o nome. Ele veio de lá no compartimento de cargas de um avião, aqui para as Minas, onde viveu conosco ainda por muitos anos.
Na vila de Samuel, em Rondônia, projeto da Eletronorte e cuja empreiteira foi a Norberto Odebrecht, deu-se a construção da primeira usina hidrelétrica daquele estado, e formou-se uma sólida comunidade, pelo contato de muitos anos.
Samuel era uma cachoeira do Rio Jamari, cuja paisagem foi completamente modificada para a formação do lago artificial e instalação das comportas.
Nos tempos de Sarney, quando da grave crise de desabastecimento no Brasil, nossa prosperidade era tamanha e não foi abalada, senão para os que perderam o emprego. Mas isso era do nosso cotidiano desde sempre. Meu pai mesmo perdeu e reconquistou seu emprego algumas vezes, mudando de cargo, aprendendo várias profissões. Lá, chegou a encarregado de uma grande equipe, sendo convocado às madrugadas para dirigir os consertos do sistema de britagem.
Às nossas margens, estava a monumental floresta amazônica e o grande rio, bem como fartos igarapés, que frequentávamos. Ah, como tive medo de navegar por ele numa frágil, mas perfeita canoa... Havia playground, onde troquei minhas confidências de juventude e observei aquele magnífico céu para meus primeiros poemas. O supermercado e o escritório central, onde buscava minhas primeiras cartas de amor. Envelopes, correios demorados, mas não carteiros. A biblioteca da escola, minha segunda casa.
De estudante, passei a professora da escola local, quatro anos depois. Sonhava trabalhar com jovens e adultos, na coordenação de Cida Nunes. Mas tive o privilégio de ser coordenada pela Olindina e aprender com a professora Indelécia a deixar a sala de aula impecável, até encerada... O que repeti em algumas de minhas salas de aula posteriores.
Minha família foi transferida antes do fim das obras. Depois veio o desemprego definitivo de meu pai, nos tristes anos Collor, e seu longo calvário até a aposentadoria.
Mas a comunidade de Samuel jamais se desfez. O dileto amigo Dirney Nunes criou um grupo em redes sociais, que frequentemente acha novas pessoas. Muitas fotografias e reminiscências daquele formoso lugar. No sudeste, tiveram lugar reuniões de confraternização dos antigos operários e suas famílias que tiveram condições de comparecer.
Ao final dos anos 2000, voltei a Samuel, levada por Tarjana, amiga de minha primeira faculdade, na Universidade de Rondônia. Vi com dor que a vila tinha sido inteira desmanchada e restavam os asfaltos e suas calçadas, cujas guias permaneciam antes sempre cuidadosamente pintadas de branco. A floresta já se reconstituía no lugar. O que era a única boa notícia.
A usina de Samuel fazia o seu trabalho de gerar energia para Porto Velho, que ainda não pudera desfazer-se de todo das antigas termoelétricas.
Outros voltaram lá depois de mim, numa espécie de arqueologia da vila. Minha querida amiga Núbia fez fotos e um vídeo das já robustas árvores às margens do rio Jamari, onde a construção da vila havia deixado um pequeno deserto de solo rachado. Ela soube que as casas da vila haviam sido vendidas, após desmontadas, havendo alguns exemplares na cidade de Porto Velho.
Havia outra vila semelhante naquela capital. Era mais sólida, destinada aos funcionários mais graduados daquela empreitada. As casas dessa vila foram mantidas, embora também vendidas, e se tornaram um valorizado bairro no tecido urbano. Voltei lá, onde me hospedei na casa de Janilda, outra querida amiga dos tempos da faculdade. Ali estava uma nova população privilegiada. Também fora ali o alojamento de nossos queridos professores de Samuel, alguns hoje participantes de nossa comunidade virtual. Inclusive de Geraldo Lara, o famoso professor de Matemática, hoje meu colega de rede municipal em Betim. Quanta coincidência privilegiada.
Alguns operários criaram raízes em Rondônia e se estabeleceram por lá, como num western ou Eldorado do Brasil. Era a nova ocupação da Amazônia, do sul para o norte, com prejuízo da formosa floresta e seus cursos d'água.
Fico pensando em quanto os suportes de memória dos trabalhadores foram devastados depois de monumentais construções. Quem terá arrastado aqueles enormes blocos de pedra que compõem as pirâmides do Egito? Viveriam eles e suas famílias em acampamentos na redondeza? Só escavações no entorno poderiam nos dar a saber.
De forma que eu sugeriria que se construísse um memorial aos operários de Samuel, se possível com ao menos uma casa. Gostaria que não restasse apenas a placa UHE Samuel, tantas vezes fotografada, e os vestígios em asfalto, que a floresta há de, justamente, devorar. 

 

O ovo ou a galinha

 

 Estão colegas reunidos saboreando um almoço. Um deles, boa-praça, chista: o menu tem frango e ovo... Bom momento para perguntar o que veio primeiro.
Um outro, ainda mais boa-praça, tasca: essa é fácil! O ovo veio primeiro, pois já existia na época dos dinossauros...
Pronto. Agora só falta alguém responder qual é a cor do cavalo branco de Napoleão.

 

 O pregador


Imagine o leitor a minha colega Santuza. Linda, loira, depois dos 60. Mas o mau-humor em pessoa. O carro precisou de oficina, ela foi à academia de coletivo.
Começou que o rapaz catraca livre tava de funk na caixinha de som. Ela me disse que ruminava. Tem mais música no mundo não.
Contudo, ela continuou, nada é tão ruim que não possa piorar.
Boa tarde. Em nome do senhor Jesus, eu peço licença de seu tempo para falar um pouquinho da palavra de Deus.
E Santuza desceu na academia, sem poder escapar da intensa voz do pregador. Pecar é tentar ser independente de Deus.
Santuza de tromba. Inda escreveu uma sugestão e pôs na caixinha apropriada do coletivo. Devemos usufruir do sossego no veículo.
Você imagina, Aninha, que o fedapê sacou do celular e leu o texto sagrado. Vá e não peques mais.
Ora, tudo agora é no celular. O profano e o maldito. Que nada mais é sagrado nesse mundo não.
Arre! Não se pode dispensar amigo. Mas eu custo a guentar as birras da Santuza.

 

 Título de eleitor


Fazer a crítica do voto nas eleições da democracia representativa é quase sempre uma heresia. Afinal, dá-nos um conforto imenso pensar que todo poder emana do povo e a ele cabem as decisões a esse respeito.
Que o povo esteja pouco se lixando para o voto e goste mesmo é do feriado. Que venda seu voto a preço de banana - esteja ela cara ou barata. Que as magras e nanicas elites - no sentido conotativo, perdão - também gostem do voto porque podem comprá-lo e induzi-lo sem serem criticadas. Tudo isso é coisa que só dizem os hereges.
Por isso, a história do Edilson livra a cara de quem quer falar o proibido e incorreto politicamente. As histórias são imbatíveis nesse sentido.
Edilson não parecia nada um transgressor do sistema político mais sedutor e enganador possível. O que, espero, só acontece em locais enganadores por sua própria natureza, já desde o berço esplêndido. Arrumou uma profissão em cujo exercício lidava com políticos em cem por cento dos casos, sendo amigo amado por todos.
Mas não votava em ninguém não. Fizera seu título aos dezoito anos, em cidade da qual logo se mudou. E na cidade onde perpetuou-se cidadão, não era eleitor e jamais foi. Não transferiu seu título e só declarava essa heresia em mesa de bar, com amigos, para o riso gargalhal de todos.
De primeiro, ia aos Correios para justificar. Depois, até isso largou de mão. Curtia inteiramente o feriado de eleições com os amigos, comendo carnes nobres, passeando em belos lugares próximos, dormindo horrores. E quando seu pai lhe pedia votos para si ou para outrem, dava aquela risadinha simpática e prometia transferir o título.
Morreu depois de muito e bem viver, sem jamais votar. Bienalmente, comemorava não ter votado naqueles com quem o povo se decepcionara, e de novo não ia votar. Nenhuma retaliação jamais o atingiu.
Depois de observar o marido durante anos, sua mulher adotou um comportamento próximo. Não votava, ia com ele às carnes nobres, preparadas por churrasqueiros gourmet, e depois pagava irrisória multa. Era de signo terra, não gostava de ser vista com a boca na botija.
Edilson foi muito pranteado ao morrer, e seu velório coalhou de políticos. Sabiam de nada não, os inocentes. Os culpados sabiam e não estavam nem aí.
De forma que um cartazinho apócrifo, espalhado na cidade muito depois da morte de Edilson, ameaçando quem não fizera biometria, me trouxe a grata lembrança de sua pessoa. E um riso gargalhal.

 

 Imagem e semelhança do robô


Tem quem diga ser o homem imagem e semelhança de Deus. Tem quem diga também ser o contrário, Deus imagem e semelhança do homem. Mas creio ter sua concordância de que agora o homem é imagem e semelhança do robô.
Conheço um jovem médico androide impressionante. A clínica que compartilha é um verdadeiro cenário de filme platinado. A secretária, seja lá o que esteja fazendo, ainda que tenha gente envolvida, interrompe automaticamente para atender ao telefone.
O atendimento médico é perfeito e só pode ser virtualmente programado. Desde fechar a porta e indicar onde acomodar a bolsa, até o abraço para que você volte, passando por todos os termos técnicos saídos evidentemente de manuais e implantados através de chips.
Achei que era uma coisa excepcional, o médico high-tech. Mas aí conheci trocador de van com os mesmos tiques, atendente de loja, performer desses que finge ser estátua nas ruas, moça que vai à academia. Sentei na Praça Sete e assisti a um interminável desfile de robôs assim paramentados por querer. E no shopping passou um homem sobre um veloz carrinho individual, que me pareceu robô de filme.
Não sei se seria a busca eterna do homem pela perfeição. Ou sua mais absoluta confissão de que a imperfeição é a busca.

 

 Riobalda

 

Descia lentamente pelo corredor esquerdo do auditório enquanto o público extenso aplaudia em pé. O curta fora então premiado e exibido. Já quase no palco, em seus modestos e indefectíveis tênis, pantalona e malha larga. ouviu um comentário surdo. Estudei com ela. Parecia uma ostra.
De fato. Já no palco, enquanto falavam os anfitriões e parceiros, para manter-se calma, ficou olhando por trás dos óculos a antiga colega de academia. Lembrava seu próprio insistente silêncio numa faculdade onde a expressão era a razão de ser. E em suas raras manifestações, a escuta e o apreço dos demais.
Fora considerado óbvio que seguisse direto da graduação para o mestrado, exceto por ela mesma. Nem o concluíra, foi convidada para o doutorado, ocasião em que já era conhecida por seus textos e vídeos. O orientador disse da necessidade de estudar um tempo fora do país, o que seria providenciado através de agência pública.
Mas foi aí que o mundo caiu. Davam-lhe agora o microfone para que algo falasse sobre sua extensa e irregular produção. Não que tivessem citado a irregularidade. Pediam que falasse sobre sua produção em vídeo. Sobre seu estilo, que tinha como um pilar a tematização da vida pessoal. Sobre sua simultânea atividade em cinema e literatura. E muito discretamente perguntaram sobre sua longa ausência nos espaços de produção e debate.
Riu-se timidamente. Falou um pouco sobre a privatização do mundo e sobre poder ser o privado objeto de instigante debate público. Assim explicando a quem tinha ouvidos o por quê de ter seus filhos entre as pessoas preferidas de suas câmeras. Sobre o ter sempre um flerte ou namorado ou marido. Ou namoradas. Igualmente diante das câmeras. Disse jamais ter realmente optado entre a literatura e o cinema porque acreditava poder frequentar a ambos. Mas nada disse sobre ter ficado dez anos desaparecida do mètier. Exceto raras vezes, quando aceitava convites e abusava do álcool e da generosidade dos amigos, nunca lhe faltando alguns deles.
Recebeu simbolicamente o prêmio do festival. Intimamente comemorava que fosse tanto dinheiro, pois há tempos não tinha recursos sequer para a produção. E dessa vez não demoliu os cânones da mostra, como o fizera cerca de quinze anos antes, mesmo tendo sido considerado o seu vídeo a melhor realização pelo júri.
Agora então era preciso participar do coquetel, o que, para ela, era dos mais terríveis sacrifícios. Muito pouca conversa achava interessante. Mas apreciava a comida e a bebida, permanecendo até fechar o boteco. 
E para disfarçar seu medo de gente. Essa mesma sobre quem fazia cenas e letras. Olhava a tudo intensamente, enquanto fingia ouvir o que diziam os comensais. Na verdade, costumava ouvir por alto e só fixava mesmo as últimas palavras dos interlocutores. Aquelas que precediam a uma pergunta tal como não é? Ou. O que você acha?
Não raro, Riobalda dava mostras de não ter ouvido nada. Às vezes porque falhava em fingir. Outras vezes porque fazia mesmo questão de se chocar ao falante.
E neste coquetel em particular, enquanto fingia ouvir a bajulação ou mesmo o genuíno interesse, ela via em flashes suas memórias. E intimamente planejava como responder à pergunta por que você passou mais de uma década sem filmes e sem livros.
Agora poderia responder se quisesse. Foi muito tempo de análise. De adicionar ansiolíticos e antidepressivos ao álcool. Além de analgésicos e até fitoterápicos e homeopáticos. Pois era a própria contradição em termos. Podia admitir que o mundo caíra em dois grandes blocos, bem anos atrás. 
Um bloco fora a vida acadêmica. Disse não ao doutorado internacional porque não queria maneira alguma escrever sobre cinema. Só soube a posteriori que queria escrever e fazer cinema sobre a vida. Ou: havendo que ter gaveta, ao menos que fosse gaveta larga.
Mas enquanto não sabia, tentou ganhar a vida como professora de arte. O que não dava, pois também não queria ensinar a classes de pessoas. Não acreditava em classes. Daí que tenha sido considerada inapta para a função de professora de arte em classes. 
Quedou depois, como é sabido, muitos anos sem trabalho, exercendo funções dispensáveis nas escolas, sem filmes, sem escritos. É que tinha caído também o outro bloco. Seu casamento, o segundo, com um homem a quem muito amava.
O romance começou quando ele, bem mais jovem que ela, ainda se graduava.  E por ele ela foi expulsa de seu primeiro matrimônio, com malas jogadas à rua e insultos de adúltera pra baixo.
Cursando história, e ao conviver com ela, migrou imediatamente para o cinema. Literatura não, nem cogitou. Sem tanto talento, porém com dignidade e estudos apropriados, ele topara fazer a dissertação, a tese, o concurso, escrever e falar sobre cinema. 
E não entendia como podia Riobalda continuar apagada de porres e de remédios. Como ela podia ter desistido de ganhar dinheiro. Como podia descumprir seus compromissos e jogar fora todas as oportunidades.
Estabelecido, o então marido de Riobalda deixou o casamento e a cidade, levando o filho do casal. Não porque quisesse, mas porque sabia não ter a mulher um puto e nem energia suficiente para sequer cozinhar. O primeiro marido também assumira o primogênito. Sendo ambos os ex-maridos algo como eternos apaixonados, sempre preocupados em que se reerguesse e a socorrendo nas frequentes emergências financeiras.
Dessa vez, Riobalda parece que morreu. Não de todo pois passou a frequentar sites de relacionamento e ultimamente aderira ao boom dos aplicativos. Era quase que uma treta por noite, e por vezes uns namoros de dois, três meses, sempre com homens casados. Sempre os que ficassem bem nas telas e trepassem gostoso. De forma que acervo tinha, para fazer muitos filmes. E contos e romances, quiçá novelas.
Pois de uns tempos pra cá dera pra escrever também. Aderira a pequenos cadernos coloridos e escrevia principalmente quando estava em salas de espera. O que era frequente. E também quando parecia não caber em sua própria pele, principiando a explodir. Daí escrevia e pensava está escrito. Depois eu vejo o que fazer.
Riu-se enquanto comia uns deliciosos e desconhecidos tomates no coquetel. É que lembrou de ter vivido acampada numa chácara durante longo tempo, trocando as pessoas pelas plantas. Tendo a custo recebido a visita de um amigo que conceituou o lugar. A privada da sua vida privada. Dissera isso após observar a reutilização, por Riobalda, de louças sanitárias como recipientes para as plantas. 
Então devagar é que pôde recomeçar o prazer da síntese em escritos e em filmes. Acreditava dever o redespertar à psicologia, à homeopatia e aos amigos.
Disso tudo ela podia rir agora. Mas não tivera ainda a graça de uma síntese que pudesse ser dita em microfone ou em coquetel, como resposta à citada e recorrente pergunta sobre seu sumiço. Pois ainda não sabia como vencer o gosto em preferencialmente ver o mundo através das câmeras ou das penas. Ao invés de efetivamente se misturar ao mundo ou às pessoas, assim continuando a vê-los. Ou até melhor.
Mas sem nenhum anteparo, sem mediação, continuava difícil para Riobalda. Logo ela teria exagerado no uísque. Podendo dormir no divã no hall, ou mesmo sentada na privada, como tantas vezes acontecera.
Por enquanto seguia rindo de si mesma ao lembrar os motivos primevos de seu isolamento. Os motivos de primeira infância ou freudianos. O ser negra em mundo racista e ainda hoje manter os cabelos alisados, presos para trás com passador e buchinha. O chamar-se Riobalda, Deus meu. Se ainda fosse por qualquer leitura dos pais. Não não. Ouviram no rádio sobre João Guimarães Rosa e, nascida a filha, não podendo se chamar Riobaldo, então foi isso.
Riobalda tonteou e caiu. Tomara dois ansiolíticos com o uísque. Antes de apagar riu-se de novo. Para que tanta pergunta sem resposta? Vou simplesmente dizer que eu estive profundamente mergulhada em pesquisas e por isso tenho bastante material. O que é aliás é vero.

 

Bicha hétero

 

Agora sabemos que há essa moda de taxar as pessoas segundo seu modo de viver o gênero. Uma guerra fria de palavras que qualquer hora dessas arranja um desastre nuclear. Não pode ser sapata, tem que ser lésbica. Se eu não já estiver ultrapassada. Não pode ser homossexualismo, tem que ser homossexualidade. E parece que a sigla LGBT já ganhou mais letras. Depois de ter havido a briga vitoriosa de colocar as lésbicas em primeiro lugar. Porque são mulheres e gays, assim duplamente oprimidas.
Eu de minha parte sou mais a pesquisadora que, em entrevista de tevê, encarou um jornalista-fichinha, desses que felizmente não são todos. O sujeito teve a cara-dura de perguntar à pesquisadora, se diante da multiplicação de denominações de gênero, ela arriscava dizer quantos gêneros já temos. E a pesquisadora, que deve ser muito inteligente, fez cara humilde e ingênua, e tascou: acho que devemos ter uns sete bilhões de gêneros diferentes na Terra.
Mas, enquanto isso, e já na esteira de que tantos serão os gêneros quanto forem as pessoas, conheci um capeta-em-forma-de-guri. Que, bem pode imaginar você, ilustre visitante de reflexão, não tinha chifrinhos nem rabo com seta na ponta. Era, isso sim, uma bela pessoa que adotava hábitos de homens e de mulheres. Tipo barba, cabelos longos, unhas pintadas e corpo musculoso. E que me disse conhecer um tipo de expressão de gênero que se chama bicha-hétero.
Não pude evitar de rachar os bicos. Mas devo me desculpar. Porque ele foi caracterizando, sabe. Assim de uma maneira bem bicha. Falou só dos homens. Mas depois pode-se refletir como seria uma mulher hétero-sapata. Ops, termo errado.
Segundo o capeta, o bicha-hétero costuma ser um comedor inveterado porque quem gosta de comer está sempre mastigando. Imagina. Gaba-se de suas performances eróticas e pode até ser bem machista. Mas dá aquela quebra-de-mão para explicar aquilo que sabe muito bem. Dá pitis escandalosos por qualquer crítica. Pode ser sucessivamente engraçado, irônico e amargo. Isto é, como lhe é de direito, expressa as emoções com gestos ora performáticos.
Jamais admitiria trocar carinhos com os homens, pelo menos não explicitamente. Entretanto, se a gente escuta os relatos das travestis prostitutas, logo vê que as máscaras caem. Requebra femininamente e fala prendendo ésses, mas a gente sabe que sua esposa está muito satisfeita no casamento.
Bichas-héteros preferem ficar noventa por cento do tempo com homens: boteco, futebol, filosofia, qualquer coisa mais ou menos vedada às mulheres. Cultiva muitas e boas vaidadezinhas cosméticas. Inclusive essa manifestação capitalista aí, o renascimento das barbearias, agora gourmet. Não tenha dúvida. Devem rolar bichas-hétero nelas. Assim como variadas outras expressões de gênero. Um outro tipo de lugar para frequência masculina, all right? 
Tem muito pouca mulher com barba. O sangue lusitano não foi tão forte assim. Elas frequentam clínicas de estética para eliminar as barbas. O que pode perfeitamente mudar. Não tem umas mulheres deixando as axilas in natura?
Uma parte das bichas-hétero pode estar migrando para a gastronomia, graças a Deus. É que tá difícil aguentar a comida de algumas esposas que trabalham fora. Isso quando elas admitem cozinhar, as atrevidas. O que evidentemente não significa que todo cozinheiro seja uma bicha-hétero. Na verdade, os cozinheiros são milagres ambulantes sobre a Terra.
Enfim, para melhor caraterização desse perfil de gênero, só o ilustre visitante passando a contar, em seu acervo teórico, com o conceito de bicha-hétero. E por isso aqui registro mais essa contribuição do capeta.
Lembrando que essas coisas só são didáticas e nunca encontraremos alguém que se ajuste perfeitamente a um estereótipo. Entretanto, todavia, contudo, por enquanto o conceito de bicha-hétero pode ajudar a causa do feminismo.
Como sabemos, o bom feminismo não acha acha graça nenhuma no empoderamento feminino se ele estiver associado à humilhação dos homens. Sete bilhões de gêneros, sete bilhões de liberdades. E viva as bichas-hétero.

 

A velha memória

 

Salu ficava brincando de boneca no terreiro e vendo o que via ninguém. Montava lá seu canto com tijolinhos e tábua, botava fogãozinho, panela, as menininhas-bonecas todas. E nem tinha penteado cabelo ainda. Ficava dia todo despenteada, uma sujeirinha nas bochechas e vendo o mundo viver o dia.
Bisavó tava muito velhinha. E o mundo passava o dia todo incomodado com bisavó. Vinha vó e xingava. Vinha mãe, vinha tia, todo mundo xingava. É que bisavó passava o dia todo aprontando. Ia na panela de comida, pegava lá um bom bocado e jogava no terreiro todinho. Sentava, solfejava umas cantigas antigas que ninguém distinguia por palavras, balançava a bengala lado pro outro.
De repente levantava, varria o terreiro todo, juntava a comida num saquinho, atravessava a estrada poeirenta e jogava a comida no monturo.
Voltava então à panela, pegava mais um bom bocado e jogava no terreiro e cantava cantigas insuspeitadas e varria o terreiro e tudo de novo.
Mãe vinha de lá brava. Mas vovó, não tem comida que chegue nessa casa. Todo lugar que a gente vai pisar tem arroz. E ralhava. E vinha tia e vinha todo mundo e ninguém lograva fazer bisavó abandonar sua mania.
Salu cantava cantiguinhas também, penteava boneca e olhava bisavó com carinho.
É que um dia ela entendera. Bisavó jogara comida no chão, cantara suas cantigas, balançara bengala. Depois olhara longe e dissera. Meu Deus, o que houve com as galinhas desse mundo que não vêm mais ciscar... E o olhar perdido muito tempo.
Salu entendera a bisavó, tentara explicar. Mas seu linguajar de aprendiz era muito pouco para argumentar que bisa tinha saudade das galinhas no terreiro.
Olhava com ternura, cantava cantigas. Catava o arroz que caía nos cabelos das bonecas. A mulher menina e a antiga mulher brincavam apesar do mundo.

 
Baixo centro

 

Chega a negrinha de olhos orientais. Compra uma bala, moço? Não. Não chupo bala. 
Então só me ajuda aí moço!
Enquanto tiro duas moedas do bolso, pergunto: está estudando? Balança a cabeça afirmativa. 
Qual período? 
Sexto ano.
Firmei mais os olhos. Sexto ano? Realmente, ela é só uma menina. Peitinhos recém-saídos, corpo alvorecido.
Qual escola? Tancredo de Almeida Neves.
Ajustei os óculos. Aperto no peito. Ela é quase da minha família.

 

Onze anos

 

Os meninos estavam recém-chegados à quinta série. Tudo os olhos brilhando que nem tição, os bichinho. Uma curiosidade sem tamanho. Como seria ter tantos professores diferentes. Um para educação física, um para inglês. Devia de ser o céu.
Deu dois meses, o mundo estava virado de cabeça para baixo. A professora de geografia deu uma crise. Riscou as latitudes e as longitudes de qualquer jeito no quadro negro e seu corpo todo gritava junto com a voz. Eu não aguento mais tanta bagunça. Dez meninos chamando professora ao mesmo tempo. Dez meninos correndo pela sala pra pegar borracha emprestada. Aluno chorando porque não consegue escutar a explicação da matéria. Agora é prova. Dou zero pra quem não acertar as dez questões sobre latitudes e longitudes.
Fez um silêncio barulhentão. Os olhos das meninas encheram de lágrimas de verdade. Depois de uns dez minutos a professora amaciou o coração. Eu sei que pra vocês não tá fácil. De repente ter que lidar com tantos adultos diferentes. Um diz que pode, outro diz que é proibido. Vez em quando não tem professor nenhum na sala. É muita liberdade de uma vez.
Cassiano levantou timidamente o dedo para falar. A professora autorizou. Realmente, professora. Eu não estou aguentando mais copiar.
Uai. Mas não teve aí uma demonização da cópia?


O marido

 

Estavam os três senhores bêbados no boteco.
Você sabe a Anabela? Casou.
Qual Anabela?
Aquela que trabalhava aqui na padaria sô.
Lembro não.
Lembra sim sô. Irmã da Vicentina que fugiu cum cigano. E da Raimundinha, aquela minina linda que casou cum preto fei pra caraio. Todas fia do Zé Pondé, home.
Nessas alturas o dono do boteco gesticulava em desespero para que os tontos calassem as bocas, já que o marido da Raimundinha estava justamente esperando o troco do picolé. Apontava pro preto fei pra caraio e fazia com o dedo sinal de silêncio. Via a hora que o preto rolava no chão com um daqueles senhores barris de cachaça.
O língua-solta recuou. 
Também, aqui nesse lugar esquecido de Deus só tem gente fei.
E a emenda saiu pior que o soneto.

 

Cineclube


Carolina não podia ir ao cinema. Era crente. Mas tinha uma fascinação pelo brilho das telas. O Sítio do Pica-pau Amarelo. O beijo de novela. A Lagoa Azul. Flashes que via pela janela da vizinha ou a caminho da escola.

Cresceu, conquistou um televisor portátil preto-e-branco. Para ver jornal. Como justificou a seus pais ter tanto lutado por este presente de quinze anos.
Jornal né. Logo fez jus também aos videoclipes. Às minisséries. À transgressão das madrugadas. Arrastar o televisor em sua mesinha com rodas da sala até o quarto e vice-versa. Sem barulho. Sempre uma aventura. Mas cinema não.
Até que uma dessas surpresas da vida. O professor de educação física a chamou pra montar um cineclube. Carolina não entendeu bem por que foi selecionada sem processo seletivo. Mas se era assim um presente do céu...
Muitas providências administrativas. O auditório do Sesc emprestado. A divulgação. Pixote. Sala cheia. Carolina ficou vidrada. 
Fernanda Montenegro rainha catando feijão quando o pai de Carolina entrou na sala. Terror. Ele andando no escuro à cata da filha que trêmula se levantou. Andou em sua direção. Não sem antes avisar ao professor. Sujou.
Deu graças porque o pai não era de dar barraco em público. Foi sair ao corredor que começou o sermão. Não criei filha puta. Essa pornografia. Depois de tudo o que ensinei. Você quer ir pra o inferno. Você está proibida.
Carolina calada. Trinta quilômetros até à casa. Segunda-feira procurou o professor. Apanhei mas não desisto. Professor sorriu com cara de liberdade. Vamos projetar no leprosário.
Carolina que será isso. Lera da lepra na Bíblia. Então deduziu grosso modo.
Quinta-feira encontrou o professor com as parafernálias. Quinze quilômetros, leprosário. Que visão. Buracos à altura dos narizes. Mutilações. Tristezas. Cheiros de desesperar. Cadeiras de rodas empurradas pelas irmãs até o refeitório.
Carolina não assistiu ao filme. Não guardou sequer o nome. O filme da vida se lhe bulia à flor da pele. Depois seguiu pela mão do cinema.
 
Garota fio dental
 
Para escrever um conto assim erótico, quiçá pornográfico, talvez seja útil um longo preâmbulo. Para meu perdão. So let's go.
Dentre os privilégios pelos quais sou grata nesta vida está o de ter feito parte de classes escolares antológicas. Dessas que algum professor mais amoroso diz ser a melhor de toda a sua carreira.
Assim foi Letrazum. Primeiro período de Letras. Ainda no seminário de abertura dissemos das quantas éramos. Professor reclamou, já apaixonado: era para discutir alterações na Língua Portuguesa e virou um Show de Calouros. E que show! No Tribunal Faz-de-Contas. Já se viu. Éramos profetas. E as outras turmas de Letras tu é doido? Um ciúme só.
Azar. Até hoje somos Letrazum. E embora a maioria tenha cumprido todos os períodos e já haja até pós-doutora. Temos sala virtual e encontros ao vivo. Temos memórias e sonhos. Cruzamos os ares do país para nos vermos.
Não sei o que houve no vestibular. Talvez a Copeve quisesse selecionar uma trupe. O que assim foi. Tinha poeta, dramaturgo, orador, atriz, cantora, diva, humorista, figurinista, musa, violonista, tinha o diabo a quatro. De modo que a cúpula lá resolveu fazer uns trocados nos intervalos para os happy hours ao pôr-do-sol no Madeira.
Todo intervalo tinha show. Esquetes do impagável Francisco Fields e até vaudeville. Super-produção sim, por que não. Uma broadway na Amazônia. Até o jardineiro fazia número musical.
Fio-dental era uma invenção recente. Acho que brasileira. Para escândalo de toda gente que deseja e joga embaixo do tapete.
De modo que se espalharam uns cartazes pelos corredores da universidade. Letrazum apresenta: Garota fio-dental. E era cada beldade galera. Deu fila pra comprar ingresso a preço simbólico. Sabíamos que aquela tarde ficaríamos ricos.
Nem todos conheciam o roteiro da apresentação. Alguns de nós tentávamos acomodar o público, multiplicar os assentos conforme a chegada dos ingressos.
Então vieram as musas Letrazum, aquela cabelada indígena, uns acessórios de penas, perfeitamente vestidas e usando nos dentes, como manda o figurino, o maledeto fio-dental.
Quase veio a lona abaixo. E era um teto neoclássico muito sólido. Correria, rebelião. Como num incêndio de boate, a prioridade era dar fuga às musas.
Queriam o dinheiro de volta. Mas depois reconheceram nossa lealdade. Não fazíamos propaganda enganosa. E as musas... Quem viu viverá.
 
 
 Conto de Natal

Vic não ia a festas de Natal. Fazia uma pequena ceia e dedicava o tempo livre a algum livro de poesia, com ópera ao fundo. E por isso sempre ouvia as queixas de sua querida mãe.
Naquele ano, deixou de radicalismos. Prometeu-se não estressar com figurinhas repetidas. Fez em papel jornal lembrancinhas para todos. Acompanhou o pequeno sermão e a oração de mãos-dadas. Petiscou o cardápio tradicional. Recebeu as carinhosas boas-vindas de seus irmãos. Emocionou-se.
Lá pelas tantas ouviu sua jovem sobrinha. Não vejo a hora de dar ano-novo. Vic quis saber por que. Quero começar uma dieta e fazer corrida. Também quero pintar meu quarto, que não deu até agora por causa do trabalho. Vou aproveitar as férias.
E por outros tantos lugares-comuns Vic passeou. Sempre comparando a vida com alguma passagem literária. Alguma cena de cinema.
Voltou a casa decidida. Pra mim já deu. E iniciou o ano-novo logo ao dia vinte-e-seis. Com uma bela caminhada de homenagem à sobrinha.
Pesquisou itinerários nunca d'antes caminhados. Encontrou uma pequena vila de telhados duas-águas e fachadas art dèco. Entre grandes condomínios de apartamentos que principiavam a obstruir os horizontes. Cruzou com colega de trabalho e ouviu a história de um seu amigo que por ali caiu no poluído canal. Indo curar a intoxicação ao hospital. Viu que alguém plantara hibiscos. Avistou incrédula três pequenas tartarugas que tomavam sol sobre o cano do esgoto. Parou à balaustrada. Quis saber se não era miragem. E comemorou que a vida siga resistindo.
Percebeu que pouca gente caminhava. Certamente os desportistas dali dormiam até mais tarde, esperando o ano-novo.
Entrou no parque, encontrou árvore frutífera. Experimentou. Azedinha como tantas frutas do cerrado. Lamentou o monte de entulho que ali jogaram uns desavisados.
Terminava a caminhada, de volta ao canal, quando a parou velha amiga. Dessas piolho-de-academia, em seu carrão. Isso é caminhada ou passeio. Abriu largo sorriso.
Vic abriu sorriso largo em retribuição. Vislumbrou o manacá-da-serra na calçada oposta e respondeu feliz. Passeio de ano-novo.
Então feliz ano novo. Abriu os braços a inteligente amiga. Recomeçar é em qualquer data. Mas bem ajuda um bom ritual.
 
O Parma Lat
 
Desta feita foi na Bahia. De Bethania. Caetano. Santo Amaro. Da Purificação. O casarão com altas janelas reformado por Seu Salvador. Transformado em prédio de apartamentos. De onde se viam as escadarias da catedral. As baianas e o cheiro de alfazema.
Seu Francisco demorava a chegar. Dona Consola, rugas à testa, serviu o jantar. As crianças aproveitavam o feijão com muito caldo quando o tambor da chave girou. Ajuda aqui Dudu.
Havia uma dezena de caixas na escada. O que é isso pai. Leite. O caminhão virou na estrada. Por isso demorei. Recolhemos a carga. Toma. É uma delícia.
E do jantar passaram ao drink. O primeiro longa-vida a gente nunca esquece. Mesmo que agora seja denunciado como ultraprocessado e a gente prefira beber sem leite por causa da lactose.

Dois olhos negros

E para fugir ao desespero do rompimento com o namorado, Catarina foi à mostra de cinema. Uma série de curtas, entrada gratuita. Na avenida principal, fácil de chegar a pé, desembarcando do buzão como de praxe, na rodoviária.
Era tardinha, calor escaldante, tudo lembrava ventilador de teto, girando lento, em fundo vermelho.
Ela baixinha, muito branca, coxas grossas à mostra, sandália de couro amarrada ao tornozelo, longos cabelos de azeviche dados a qualquer vento.
Escolheu fila em que ninguém sentava. E ali misturou imagens durante quatro horas. Não sabia se assistia ao eterno retorno das lembranças do namorado, se dormia e via imagens em sonho, se captava enquadramentos e tomadas na telona. Certa vez, acordou e viu na tela uma moça diante de uma janela cuja luz a iluminava. Como uma pintura renascentista. O realizador teve o cuidado de manter estática a câmera, para apreciação. Gratidão ao realizador.
O professor, solitário na fila em frente, às vezes dormitava, como ela. Antes da sessão, um dileto ex-aluno o cumprimentara.
O cinema autoral, experimental, alternativo, seja lá que denominação agora lhe caiba, não raro é hermético, pensou. No narrativas. Disse o comentador.
Saiu zonza. Sentiu-se analfabeta e consolou-se com a sensação de que todos na plateia tinham estado entediados. Sendo eles os estudiosos e professores. Procedeu ao passo miúdo de quem nada via à sua frente pois o que via era o atrás, o namorado, as cenas da mostra.
Via imagens memórias nos vidros dos edifícios. Pés descalços sobre cacos de vidro azul, creque, creque. Como Cristo sobre as águas. E aos cacos sobrepostas camadas de folhas secas davam ideia de um verdadeiro outono.
Plus size. Ei garota, você é meu puf. É mais fácil lhe ensinarem a mudar do que ensinarem a todos o respeito à diferença. Expressões do documentário sobre ser gordinha ou vozes recônditas de sua própria experiência?
E ah o namorado. Barbas grisalhas, textura boa de pousar a mão. Como viver sem seu cuidado e sua mão de ferro. Sem o seu gesto gentil de abrir a porta do carro. Sem a sua severa admoestação. Você precisa de cadeiras mais sólidas.
No aquário solitário peixinho. Tão igual a qualquer outro que, morto e substituído, continua Juarez. Porque solidão ainda maior parece ser a da jovem mulher dona de Juarez, o Primeiro e o Segundo.
Uma vista para as montanhas da latinoamérica, que em todo lugar as há. A paixão adolescente tornada impossível pela gravidade. E o menino, aguardente.
E mesmo assim, ah o namorado. Sua voz lendo em voz alta, sua velha bossa nova. Sua desesperança: a alta cultura acabou.
Passos miúdos. Nada vendo. Quando os ouvidos captaram estalidos. Um som de deejay outro lado da larga avenida. Seus passos a foram levando curtinhos furtivos, sandálias arrastadas.
E se houvesse cortina seria como máquina do tempo. Atrás da qual homens e mulheres negras a dançar. Como se as pernas fossem líquidas e os estalidos sempre os mesmos. As coreografias de muito variar.
Ela branquinha plus size classe média atraía olhares curiosos e acolhedores. A senhora de fartos cabelos crespos aos quais o vento modelava. Uns sapatos bicolores coletes de paetê. Uns dreads uns cabelos trançados, um terno verde. No pescoço um rosário. O sangue escorrendo pelo ralo, os tons sépia, a mulher tatuada vendendo atributos do reggae. Também plus size. Um baile vespertino. Uma confraternização negra das gentes de todas as cores.
Mas ah o namorado. Como podia amar tal pança. Talvez gostasse da leitura ritmada.
Cacos de vidro tilintavam nas caixas de som do disk jockey. Os pés dançavam súbita alegria. Os figurantes transeuntes experts anônimos a cumprimentavam no gingar. Lábios e dentes sorriam. Flutuava lépida gordinha e pim! Não era o estampido para o filme começar. Mas a lembrança de que o chegante buzão tinha horário. E de que era bom não esperar anoitecer.
Foi saindo de costas, dançando miudinho, quando o som do berimbau. Ê, volta pro mundo camará. Ê-ê! Mundo dá volta, camará. Uns dreads, uns cabelos trançados, um lenço no pescoço, o homem bêbado, vem prá roda! Bom vaqueiro, bom vaqueiro...
Foi saindo de fininho. Tantas janelas da alma. Dois olhos negros a chamar: vem prá roda! Mas ah o namorado...
 
 
 Beijo de cinema
 

É sem dúvida que, sendo o mundo desde o início dos seus tempos, jamais pôde um mestre ter cem por cento da atenção de seus discípulos cem por cento do tempo. Diante dessa limitação universal, seja mesmo porque o discípulo nem sempre pode acompanhar cem por cento do discurso, alguns ensinantes precisam ter bússolas. Como Clarissa.
São suas bússolas para ensinar os olhares de seus estudantes. Já deu nota apenas pela frequência e qualidade do olhar.
Vai saltando de olhar em olhar dos estudantes até achar um que brilhe mais. Continua então saltando. Mas volta ao olhar que brilha minuto a minuto. Para seguir ou corrigir o rumo.
Pedro já foi sua bússola por quase um ano. Moço bonito. Longos cabelos e já espessa e comprida barba para a idade.
Clarissa falou cada coisa sobre o mundo contemporâneo ao brilho de seu olhar. Mas começou a faltar às aulas. Já lá pra outubro. Clarissa buscou mas não achou substituto para esse marcador de norte.
Foi aí que viu Pedro matando aula. Numa parte escurinha da quadra de esportes. Ele e a loura Nara, sua colega de classe. De quem Clarissa sentira a ausência mas não a falta. Mestre sem preconceito é que jogue a primeira pedra.
Eles se beijavam de corpo inteiro. Assim como no tipo ideal de Clarissa, O Beijo de Gustav Klimt. Ela esperou a duração e pensou clichê. Não aprovara a escolha de Pedro para a paixão.
Teve humildade. Para que denunciar o casal se ela mesma quereria um beijo como aquele. E se sua bússola não precisava dela para aprender nada que desejasse.
Tempo passou. Clarissa foi saltando de escola em escola. As do sistema educacional. As da vida. E sempre olhos que brilham como bússolas.
Por acaso encontrou uma antiga colega e atualizou muitas de suas memórias. Aquele abraço de alegria. As lindas notícias. Como a do mestre de física e dançarino que se aposentou. Não da dança.
Então a pergunta que esperava em cólicas para saltar da boca. Soube do Pedro e da Nara? Soube não. Eles se separaram, menina. Um escândalo. Ela ficou muito tempo em cárcere privado. Recebendo leves torturas físicas. Queimaduras de cigarro. Várias vezes por dia. Estava desfigurada. Disseram que o Pedro tinha um ciúme doentio.
Desconcertada. Duvidando de toda bússola. Clarissa só pôde articular um quase sussurro: então eles se casaram? E pensou no falho julgamento que pode presidir um professor quando pensa ter encontrado um estudante genial.
 
Outro feminismo
 
Telma Andréa é dessas amigas de adolescência que tenho o privilégio de cultivar até hoje. Não nos vemos há décadas. Felizmente há redes e aplicativos.
Sempre foi a caixinha de Pandora em pessoa. Antes dos vinte anos passou em concurso público federal. Mó grana. Status também. Ficamos todas babando.
Dois anos depois anunciou no bar, na maior naturalidade. Ia embora para Maceió vender água de coco. Ninguém acreditou. Ela era a senhora das pegadinhas. Mas tá lá até hoje, belo bronzeado, sorrisão na foto de perfil e tudo o mais.
Sempre uma feminista radical. Falou pro próprio pai que pretendia iniciar a vida sexual. Não tava nem aí pr'esse papo de que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Chamava a polícia mesmo a qualquer sinal de tabefes dos maridos nas vizinhas.
Tempos atrás fiz contato e perguntei as novidades. Você sabe, minha vida não carece de novidades. Ela riu. Mas a maior da semana é que vendi meu carro. O que? Embasbaquei. Aquela quatro por quatro do barulho que te levava pra explorar o mundo? Qual você comprou agora?
Não comprei. Não vou comprar. Silêncio do lado de cá. Ah, nunca gostei de dirigir mesmo. Só tive carro pra manter minha independência feminista. Mas sempre oferecia o volante pra qualquer um e não foram poucos os acidentes e as multas. Imposto alto. Oficina mecânica, Deus me livre. Odiava ficar ouvindo vários minutos qual era o defeito do carro. Embora oficina seja um celeiro de gatos né. Os caras falavam até babar e eu ficava olhando era a mala.
Eu não acreditei mesmo. Mas Telma. Você ralou anos pra tirar o diabo da carteira de motorista. Ao que ela disparou mais um petardo. Não tirei. Comprei. Essa gente de trânsito é uma máfia.
Daí perguntei como ela estava fazendo com a mobilidade, ela riu gostosamente. Ih m'nha fia. Não me falta carona, ônibus, van, bicicleta e o excelente sp2. Táxi também é um celeiro de gatos. Substituí as oficinas mecânicas. E posso beber até a tampa.
Fiquei pensando naquilo, experimentei a transição e copiei a Telma. Aliás, não foi a primeira vez.
Mas outro dia olhei a rede social. Ela tinha mudado a foto de perfil. A camiseta era transparente, dava bem pra ver um sutiã de bojo. Com rendinha nas alcinhas. Dei zoom, fiquei olhando boquiaberta pra ter certeza. Liguei pra ela. Você agora está usando sutiã? Quê que tem, m'nha fia. Feminista também aprecia ser chamada de gostosa. Vai ver você não sabe que eu também botei silicone né.
A leitora me desculpe o mineirês. A Telma fala mesmo é alagoano. Mas eu tô passada. E não sei o dialeto.
 
O cozido
 
Conceição era a trabalhadora doméstica de minha família na bahiana Santo Amaro. Negra, alta, magra na medida, uns olhos esbugalhados faróis, uns belos beiços, cabelo puxado com coque na nuca. Elegantésima do alto de sua majestade, composta ao modo evangélico, via-se inteligência em cada ato.
Adorávamos seu cozido. Aquela mistura de todo legume com carne barata, da qual se fazia um babéttico pirão. Quando lambíamos os beiços, ela dizia em seu grave contralto. Vocês precisam ver isso num panelão. A familiada toda comendo. Vão lá um domingo...
Demorou anos. Um dia minha mãe nos conduziu à experiência de um poeirento ônibus. E fomos parar nas remotas fronteiras da cidade.
Os sobrados iam rareando. As casas iam ficando baixinhas. Descemos do ônibus e atravessamos um terrão vermelho até uma comprida faixa de casinhas de telhas feitas nas coxas. Só parede meia. Só parede meia.
Conceição veio sorriso nos receber. A casa lotada. Comprida, um cômodo após o outro e aquele cheiro que a tudo incensava.
Fomos apresentados com honras, tomamos fria água de moringa e Conceição convidou ao panelão. Olhei. Aquele absurdo. Batata doce e inglesa, cenoura, inhame, mandioca, abóbora, quiabo. Era sem fim. Nem havia fome para tanto.
Comecei por dois amados maxixes. Acrescentei um ou outro legume, arroz. E me assoberbei no pirão. Fã que sempre fui dos caldos.
Uma iguaria dos deuses. Jamais poderei repetir. Numa casinha senzala onde a pobreza de muitos virou a riqueza de todos. No comer. Comunhão.
 
Macaco para o breakfast
 
Foi numa dessas levadas da sorte que fui parar bem no meio da floresta amazônica. Em vila operária com magníficas casas de madeira envernizada. Portas e janelas brancas. Onde nos conduziram meus pais.
Mal chegada, uns amigos de meu pai convidaram para uma caçada. Imaginei caçada eu. Noite inteira no meio da selva.
Foram explicando que eu dormiria em rede no alto da árvore. Que seria içada até lá. E cercada de companheiras. De modo que nenhum perigo chegaria até mim.
Não faço ideia de por que. Vi-me atravessando um daqueles rios amazônicos. Cuja margem fica além do olhar. Numa igara a um dedo de ser inundada. Eu coração na boca. De mim diante homem calmo a remar. E no meio de tão espessa floresta as trilhas se seguiam sem sol.
Era tardinha. Chegávamos para montar acampamento. Fui logo içada.
No alto na rede que sons e que céu. Uma noite inteira. Nenhuma luz humana à vista. Dessas insônias que valem uma vida.
Dizem que pra descer todo santo ajuda. Não é bem assim não. Mas o estômago reclamava. Terá sido um jacaré. Uma ave. Uma cobra. Tudo isso eu já comera de bom das caçadas dos amigos de meu pai.
Cheguei a cara deles era muito boa não. Ih. Disse um à guisa de bom dia. Só capturamos um magro macaco.
Sentamos à roda da fogueira. Mesmo suando em bicas. Um bom café. Uma carne escura e fibrosa. Não sei se um chefe de cozinha encara.
Dizem que pra voltar sempre parece mais perto. Nem sempre. Todos íamos silenciosos. Melancólicos a olhar a verde margem. Que nunca se achegava ao olhar. Respeitosos de nossos líderes. Homens pioneiros. Mas sonhávamos o lanche da manhã. Ao menos o almoço.
O sol ia alto. Calor quarentava. Atravessamos a desértica faixa da floresta até a vila.
Tive o privilégio de meu tradicional café-da-manhã. Sabem bem meus amigos que é uma orgia. Mesmo que o almoço de minha mãe já espalhasse seu oloroso incenso pela casa. Depois também almocei fazer o que. Era frango com quiabo.
Olha. Um dia é do caçador. O outro também. Só que uns dias é macaco.
 
A galinha pintadinha
 
Eliane era uma meninazinha migrada no sul do Brasil. Ela com sua família, Dona Consola, Seu Francisco e Dudu, irmãozinho caçula. Loiro, olhos da cor de esmeraldas, tão diferente dela como a lua do sol. Mas os pais eram assim opostos também. Seu Francisco negro pixaim. Calças brancas, cordão de ouro. Dona Consola branquinha, longos cabelos negros, mais das vezes presos num estiloso coque. Saias godê marcando fina cintura e generosos quadris.
Estavam ali temporariamente, com algumas centenas de outras famílias trazidas de várias regiões do país. Um caldeirão de brasis para rasgar nova estrada de asfalto. 
Moravam na vila construída pela empreiteira, para evitar o ir-e-vir dos operários entre o canteiro de obras e a cidade mais próxima. Que era bem longe. As casas de madeira pintada em verde-claro tinham assoalhos de compridas tábuas. Geralmente encerados ao modo de espelho. Pois já havia enceradeira de duas escovas. E porão onde se guardava a lenha. Lugar também bom pra brincar.
Ruas largas, igreja, mercearia. Para se comprar fiado meses a fio. E pagar quando a Gata acertasse o atrasado. Pois era líquido e certo. Assim Eliane ganhou sua primeira sombrinha. E Dudu um chocalho de três esferas.
De escola, Eliane não se lembra. Era muito pequenina. Mas tinha o parquinho de areia, onde aprendera a andar. Onde Dudu tomava sol no carrinho.
Como esse tipo de obra podia durar vários anos, as famílias procuravam adaptar as casas da vila ao seu gosto. Ou costume de origem. Umas faziam jardins com baixas cercas brancas. Outras não. Havia quem fizesse um novo quarto. Tendo assim o das meninas e o dos meninos. Algumas tinham suas criações. E delas um ovo. Um toucinho. Até mesmo leite. Ou uma horta com cebolinha e erva-cidreira.
Dona Consola fez um bom puxado de madeira aos fundos. A fim de ter uma grande cozinha à moda da terra natal. Com o dobro da metragem dos cômodos tradicionais. Uma cozinha-sala.
Seu Francisco chegava às dezenove e ia primeiro ver o querido caçula. Por quem muito esperara e que dormia feito um anjo às horas primeiras da noite. Então sentava à mesa da copa, antiga cozinha, tirava as botas e se servia de sua cachacinha.  Da qual deixava um tiquim no fundo do copo para Eliane. Talvez por isso hoje uma apreciadora. 
Até que Dona Consola anunciasse o fim do recreio para a hora sagrada: arroz, feijão, bife e muita verdura. Tudo de primeira. Seu Francisco fazia questão.
A casa na vila era linda de se viver. Já se viu. Mas Eliane adorava a rua, a praça, o porão. Onde reunia as amiguinhas, cada qual com seus brinquedos. Para montar ampla e equipada casa das bonecas.
Eliane se vestia especialmente para as tardes boas de brincar. Aquelas em que não nevava. Vestido rosa de mangas fofas. Azul-marinho com rendinhas brancas. Assim querendo empurrar o ponteiro do relógio. Até as quinze britânicas horas de Dona Consola.
Um dia deu hora de Eliane encontrar as coleguinhas. Mas Dona Consola banhava Dudu. Espera, Eliane. Eu tenho que secar e vestir o seu irmão.
Eliane atacou de impaciência. Era muito frufru. Talco da Avon, pomada hidratante, meia com bolinha pendurada, botinha, fralda, calça plástica, macacão, manta, vira-manta, touca. Santo Deus. Tudo bem que o lugar era frio. Mas a meninas esperavam no portão.
Arrastou devagarinho uma cadeira até a porta fechada à taramela. Não percebeu que havia um vão entre a parede e o chão na altura da porta. Um dos pés da cadeira ali se encaixou.
Foi Eliane subir e abrir a taramela que tudo rodou. A porta se abriu sob o impacto da cadeira. Eliane rolou com ela escada abaixo até cair sobre a galinha Pintadinha com seus pintinhos. Pois Dona Consola bem gostava de ovo-caipira. 
Como não havia cerca, a danada da Pintadinha conseguira chocar uma ninhada. Era daquelas bravas a Pintadinha. Parecia mesmo com Eliane, que gritava. Mãe. A galinha está bicando minha cabeça.
Dona Consola largou Dudu com a água do banho e foi salvar Eliane das bicadas da galinha. Sorte era que Dudu já sentava com as mãos atarraxadas às beiradas da banheira. Que virou bem quando voltava esbaforida Dona Consola. 
Deu tempo de pegar Dudu no ar. Salvaram-se todos. Dona Consola primeiro sussurrou canções-de-ninar para Dudu. Depois ralhou com Eliane. Você bem que mereceu aquelas bicadas. Esperar um cadinho não mata ninguém.
Ficou de cama, Eliane. Mimada. Ganhando chazinho e mingau. Seu Francisco, ao chegar, andava do berço à cama-de-campanha. Velando a saúde e alegria de ambos os filhos.
Mesmo assim, ao cafuné de Dona Consola. Eliane foi capaz de perguntar. Mãe. Você pode me pintar de branco pra eu ficar igual ao meu irmão?
 
 
 O velhinho de media decibeis
 
 
 
  Toda cidade tem ou deveria ter seu louco mensageiro. Verdadeiro monumento local. Que ficará agressivo alguma vez, mas aí bastará afastar-se e ele bradará sozinho as suas lucidezes. Que vez ou outra será levado por polícia ou ambulância. Mas em geral dirá o que muitos gostariam de dizer.
Naquela cidade tinha o Pé-de-Alface. Tem mais não. Muita gente ainda lembra.
Ouvi dizer de um louco de mesmo naipe em outra grande cidade. Um que embargava eventos pela emissão de decibeis. Assim embargando diversos eventos. Todos que reunissem mais de dez pessoas e de que ele tivesse conhecimento em tempo de embargar.
Mesmo assim, a gente local era muito acolhedora com o velhinho, como chamaremos doravante. Talvez por não haver crescido mais de um metro. E ainda por cima não haver namorado. E ter corcunda, pernas tortas, grisalhos pixains. As pessoas diziam entender a sua dor. 
Cuidemos que haja outros no mundo como ele. Mas não os há em em seu círculo de amizades. Então, o velhinho era muito só.
Assim mesmo, não querendo ninguém a morte, ele aproveitou seu dom de interpretar, e começou a discursar pelas ruas e praças. Falava principalmente contra a corrupção de cada dia e não poupava ninguém. Vestia um indefectível terno e colorida gravata. Gentilezas de um velho alfaiate.
Podia, imagine, abordar um casal de namorados e bradar contra seu agarramento. Renegar as roupas curtas da menina, ou andróginas do menino. Dizer que tal indecência era sinal do fim dos tempos. 
Nesse caso, o casal devia seguir andando em silêncio, enquanto o velhinho seguia atrás, vociferava. Pois logo encontraria aberração mais grave.
Discursava horas frente à Câmara e à Prefeitura, chamando de larápios e filhotes da ditadura certos homens que passassem. Não escapava vereador ou prefeito nem qualquer figura pública.
Daí um pessoal da luta anti-manicômios procurou o prefeito, com uma proposta sobre o velhinho. O psiquiatra dos olhos-de-lago fez uma recomendação algo filosófica: Senhor Prefeito, há muita lucidez no velhinho. Mas a cidade se vem tornando incoveniente para ele pois esta cresceu. Migrantes e passantes que temos numerosos, algum pode revidar e machucar o velhinho. Muitos não sabem quem ele é entre nós.
O Prefeito, uma vez já seguido pelo velhinho constrangedores minutos, ouvindo brados de larápio e filhote da ditadura, quis ouvir a proposta.
Veja, dissera uma estagiária da saúde mental: a legislação determina o número máximo de decibeis que uma pessoa pode ouvir continuamente, sem que isso comprometa seu conforto e sua integridade auditiva. O velhinho pode receber a função social de medir os decibeis e embargar os eventos quando o índice-padrão for ultrapassado. Assim, a gente restringe o seu campo de atuação.
O Prefeito deve ter pensado lá com seus botões que valia tentar para poupar de insultos a sua pessoa e outras pessoas.
Então a menina continuara. Como será um único fiscal, vai alcançar um número restrito de desrespeitos à legislação. Tem um aparelhinho portátil que mede os decibeis. Devemos providenciar um para o velhinho.
O Prefeito matutou e mostrou que não era tão simples. Como fazemos com o entorno da casa dele? Qualquer barulhinho, lá vai ele medir os decibeis.
Não, Senhor Prefeito, disse o psicólogo. Ele raramente vai estar em casa, exceto à noite. Vai passar o dia circulando em inumeráveis missões. Consideramos em nossa proposta morar o velhinho em bairro de classe alta, porém num barraco de puxadinhos que vem em mãos de sua família geração a geração. Dizem que lá era quilombo. 
No topo de um daqueles privilegiados morros, recebe e processa lixo reciclável, que também coleta. Não por dinheiro, pois beneficiário da previdência. Segue construindo, no barracão, um curioso labirinto onde se expõe a sua criação escultórica com o lixo.
O bairro é silencioso, continuou o psicólogo. Eu cá nunca vi som alto em bairro rico.
É... O Prefeito mastigava a dentadura. Vocês sabem vender bem o peixe. Tenho ainda uma última pergunta: e se alguém que for pego pelo medidor de decibeis do velhinho resolver desobedecer ou revidar?
Bem, Senhor Prefeito, respondeu a coordenadora da equipe. O velhinho é nosso patrimônio. Devemos desenvolver um programa de educação urbana para que a população lide com o velhinho. É preciso ensinar aos velhos e aos jovens que ele nos traz alegria, nos diverte. Joga em nossa cara que não respeitamos nossas próprias leis. O que é uma função indiscutível dos loucos. Produz ainda arte visual e por isso sua casa deveria ser visitada. E inventariada. Classifica, ordena e reaproveita metodicamente o lixo. Poderia ser premiado com o Mérito Ambiental, Senhor Prefeito.
Devemos ensinar aos velhos e aos jovens que, quando abordados pelo velhinho, eles deverão acatar suas ordens de pronto. Deverão baixar os olhos e ouvir o longo discurso. Não deverão desviar a face do dedo-em-riste do velhinho. Deverão dispersar. Logo o velhinho encontrará outra distração. Aí, o pessoal liga o som de novo.
E foi assim que o velhinho fez jus à função pública voluntária de medidor de decibeis e ganhou status de patrimônio cultural daquela cidade. Sua casa foi inventariada e passou a receber visitas à noite. Assim, o velhinho ficava ocupado no horário de maior incidência de decibeis.
Consta que foi chamado diversas vezes para expor em museus e galerias. Caso realmente raríssimo. Um afrodescendente baixinh, com eminente corcunda, dado como louco, e com toda essa cidadania.
Não cheguei a saber por qual nome é conhecido o velhinho. Mas deve ser algo como Pé-de-alface ou Profeta Gentileza. A cidade teve, certamente, inspiração musical. Ou não teria criado solução tão sensível para a convivência com seu simpático velhinho.
 
Causo de amor no Angola
 
Consola era uma betinense do Liberatos e viera morar no Angola quando a cidade ficou mais chique que o campo. Branquinha, bem feitinha de corpo, era de família pobre e começou a trabalhar ainda quase menina. Meados dos anos sessenta, trabalhava na pensão de seu Pedro e dona Naná, na Rua Doutor Gravatá, em seus áureos tempos art dèco. Ali se hospedavam os trabalhadores das empreiteiras que construíam a Refinaria Gabriel Passos. 
Consola era tão prendada, que o dono da pensão deu ordens de que nenhum rapaz a molestasse. A pensão vivia um brinco. E os rapazes todos olho-vivo. Era menina pra casar.
Andava meio comprometida. Sob os cuidados da irmã mais velha, fora a um parque de diversões instalado na Nicolau Alves de Melo. Parque na cidade: acontecimento. Um rapaz a abordou, pediu para acompanhá-la até à casa. Que, no caso, era a pensão. Onde Consola dormia para madrugar a tempo de fazer o café-da-manhã dos trabalhadores.
Adelino morava na mesma pensão e tinha como íntimo amigo um guapo mulato, Francisco. Capixaba para os íntimos. Este não nascera no Espírito Santo, mas na remota Alvarenga, das próprias Minas. E agora morava numa república, ali pelas alturas do atual Bar do Coxinha, trazendo também seus irmãos de sangue e de êxodo rural, Lourenço e Djalma. Este último, o cozinheiro dos republicanos. Um veio de ouro corria sobre a cidade.
Quem via o garbo de Francisco não dizia que calçara sapatos pela primeira vez há um ano. Andava só nos trinques. Usava as calças de linho do irmão Lourenço e mais camisas xadrezes muito estilosas.
A empreiteira o transferira da Rio-Bahia para a obra da Regap. E ele também pousou olhos desejosos sobre Consola. Disse ao amigo Adelino: vou tomar Consola desse rapaz. Esqueceu que nunca fora à escola e escreveu um bilhete: perciso falar com você. Jogou o bilhete pela janela da pensão justo quando Consola conversava com os patrões.
Consola tremeu com o bilhete na mão, escondeu-o, escondeu-se. Mas acabou ouvindo o pedido de Francisco para namorar. Mandou dizer por Mariinha, tendo esta transmitido o recado ao Adelino, que aceitava conversar com Francisco. Não foi por acaso que Adelino e Mariinha depois se casaram...
Um dos rapazes pensionistas, Raul, carinhosamente conhecido como cabelo-à-prova-d'água, espalhou as rivais intenções de Francisco entre os colegas da pensão. Houve uma conspiração para dar um corretivo em Francisco e a pensão ficou um agito só. Preto metido, não é mesmo?
Consola, temerosa do escândalo, pediu contas, para desespero do patrão. Este a cercou o dia todo, até saber por que ela queria se demitir. Quando soube o motivo, chamou um dos rapazes e ameaçou: se a Consola for embora, boto todo mundo no olho-da-rua. Fico sem nenhum de vocês, ameaçou, dedo-em-riste. Amofinados, os apaixonados e suas respectivas torcidas organizadas não tiveram senão.
Francisco foi à casa de Consola pedir ao pai permissão para o namoro. Seu Zico permitiu. Achou que o estilo daquele nêgo era um inequívoco sinal de que se tratava de um bom-partido para sua princesinha.
Os encontros eram na humilde sala, com a assídua presença do pai. No máximo podiam dar-se as mãos e o abraço de despedida. E se havia baile, a mãe de Consola ia, para vigiar. E também para dançar, que ela era uma arretada pé-de-valsa.
Mas a empreiteira transferiu de novo Francisco, desta vez para São Paulo. Antes de ir, sem se despedir, ele deixou no anular direito de Consola uma grossa aliança dourada, como era praxe antigamente. E se passaram os primeiros dias, depois os meses, deu um ano. Escrever cartas de amor pela pena dos outros não era mais fácil que escrever de próprio punho. Não houve cartas. 
A mãe de Consola, mulher experiente, não aguentou: deixa de bobagem, minha filha. Esses rapazes de trecho só querem se aproveitar das moças, depois desaparecem. Veja o caso da mocinha do Decamão, que tomou veneno depois de engravidar de um trecheiro casado.
Consola resistiu, mas um dia bateu preguinho atrás da porta do quarto e pendurou a aliança. A esperança é que não tinha jeito de pendurar.
E como os dias são um depois do outro, chegou aquele em que a irmã de Consola adentrou a casa esbaforida e soluçou: o Francisco vem aí! Consola correu aos saltos para o portão, a tempo de ver Francisco virando a esquina, passinho miúdo... Voltei para casar.
Foi uma correria. Para ter o vestido de noiva, foi preciso abrir mão do fotógrafo. Mesmo assim vestido alugado com barras sujas de terra vermelha, pois antes servira a uma noiva da roça... 
Casaram na Igreja Velha, apadrinhados por Dona Noemi e tantos outros amigos. E gratos aos cupidos Adelino e Mariinha. Não sem antes terem pagado pela cerimônia de casamento ao lendário Padre Osório.
Apertado no terno e nos sapatos, Francisco pingava suor pelos dedos da mão, como contam risonhos seus cunhados.
Francisco levou a princesinha Consola para correr mundo. Desceram, cada um com sua malinha de madeira, para a rodoviária de Betim, para tomar a jardineira... Consola em elegante calça verde de elanca, presente do pai, e duas colheres de latão, presente da mãe para o enxoval.
De norte a sul, de leste a oeste do Brasil, estiveram presentes na construção de estradas e barragens.
As tretas foram muitas, conto de outra vez. Como eram anos-de-chumbo, se o governo não pagava às empreiteiras, os salários de Francisco podiam atrasar seis meses. Felizmente, havia caderneta de armazém. O que não impediu que a aliança de Francisco precisasse ser vendida para alimentar com frutas sua filha que vos fala.
Mas o Bití jamais deixou de pulsar no coração de Consola. Ela sonhou por anos voltar do exílio. Voltou com família, continua admirada, e como estão por aí até hoje, posso dizer que esse causo de amor teve final feliz. 
O amor não é feliz todo dia. Mas da soma dos instantes é que ele se faz.
 
  
 O livro dos espíritos

Maria tinha lacerada a sua alma. Ela via claramente o caminho à sua frente, mas este era estreito, pedregoso, íngreme e ladeado de espinheiros. As sandálias de Maria estavam gastas, sua pele coberta de fuligem, seus cabelos desgrenhados. Ela estava cansada de caminhar e ainda não vira o oásis.
Então, viu uma placa apontando um atalho: D. Ana. Simplesmente isso. Maria pensou: nessas alturas, não posso ignorar os sinais. Ana era a avó de Jesus. Na tradição, é apontada como a velha mestra, aquela que ensina a ler e a viver.
Maria tomou o atalho e, ao cruzar o portão, apenas cerrado por uma tramela, viu-se diante de uma grande obra humana: um jardim cuja imponência e perfume, cujas cores obrigavam a emudecer em prece. Qual canto do Uirapuru.
D. Ana apareceu com mãos sujas de terra, uma das quais segurava uma pá de jardim. Olhou Maria de cima a baixo, com olhos que atravessam e vêem lá, muito depois. Maria baixou os olhos e disfarçou: D. Ana, com sua licença. Venho de uma longa e atroz caminhada e preciso de remédio para meus pés feridos. Esse jardim, imagino, não há de ser em vão...
D. Ana pôs a pá de lado, paciente, mas firmemente, como quem diz: você não veio aqui à procura de jardim. Sentou-se, com as mãos cheias de terra, em uma velha cadeira, e apontou outra, a seu lado, para que Maria se assentasse. Esta entendeu: era uma ordem.
Então, sem que Maria nada perguntasse, D. Ana falou por duas horas. Como os velhos, algumas vezes repetiu histórias inteiras. E enfatizou repetidamente a moral da história.
Perdi minha mãe com apenas um ano, disse em tom sério, olhou para Maria profundamente, e seus lábios formavam uma linha reta, como fazem os mestres quando estão ensinando. Meu pai, posso dizer que não o tive. Porque ele queria que eu fosse homem. Os pais daquele tempo só queriam homens, que podiam trabalhar na roça mais cedo e não traziam netos para casa antes da hora. As mulheres tinham vindo ao mundo para servir. Aprendi isso praticamente no berço, que não tive.
Logo obtive uma madrasta. E como ela era mulher, oprimida, viu em mim e em minha recém-nascida irmã, cujo nascimento custara a vida de minha mãe, o seu império. Porque quem é muito oprimido geralmente encontra um ainda mais fraco para oprimir. Cedo aprendi que nada que eu fizesse para minha madrasta estaria certo. Eu errava todas. Aceitei.
Curioso é que meu pai continuou tendo apenas filhas... E contraiu uma grave doença, que lhe adveio de seus ancestrais e atingiu vários familiares próximos, inclusive a mim. Assim, vim parar aqui no atalho da curva, para viver escondida, em companhia de outros como eu.
Casei-me aos quatorze. Era vontade do meu pai. E vivi até os cinquenta e dois anos com meu marido, que era uma versão mais jovem do meu pai. Se eu conversava com mulher, era sapatão. Se conversava com homem, era Ricardão... D. Ana riu um riso em linha reta, porém seus olhos cintilaram.
Eu era completamente só. Quando criança, os meus aqui companheiros de infortúnio queriam que eu fosse à missa todo domingo. Eu me escondia sob o cobertor, para ver se me esqueciam, mas jamais fui esquecida. Meus companheiros aqui de infortúnio queriam que eu recebesse consolo. Mas a missa não me consolava. Ela nada dizia.
Não tive filhos. Graças a Deus. Fui amaldiçoada nisso também. E por isso recebi muitos açoites. De língua e de espada-de-são-jorge. Mas meu marido, que ninguém é de todo mau, tinha um livro numa mesinha da sala. Vez em quando, ele passava cuidadosamente o espanador no livro. Uma vozinha fraca, lá no fundo de mim, avisava que aquele livro poderia ser um alívio para os açoites. Mas eu não sabia ler. Na roça, menino já não ia à escola. Imagine menina.
Mas um dia, após o duro trabalho de sempre, sentei no sofá, dobrei os joelhos e comecei a folhear o livro. Quando meu marido cruzou o umbral da porta, que eu enfeitara com uma cortina de fitas coloridas, pensei: mais açoites. Mas ao ver o livro em minhas mãos, os olhos do meu marido suavizaram. Você não sabe ler, disse ele. O que procura neste livro que nem desenhos tem? Mantive o olhar, em trêmulo silêncio. Então ele disse: está bem, vou ensiná-la a ler.
Meu marido foi um duro professor. Ensinou o bê-a-bá e disse: você já tem a chave. Agora leia tudo o que encontrar pela frente: folhinha Mariana, bula de remédio, almanaque de farmácia. Leia tudo. É lendo que se aprende a ler. Mas esse livro aí que está na mesinha, respeite-o. É para ser lido por quem já sabe ler.
Sim, senhor, disse eu. Não, senhor, pensei. E me perguntei por que ele não me aconselhara a ler romances.
E quando ele saía para o trabalho, pois era acendedor de postes, eu enfrentava rápido meus afazeres, sentava no sofá, dobrava os joelhos e pegava o livro. O almanaque de farmácia ficava ao lado pois, a qualquer ruído, eu trocava um livro por outro. E passava o dedo por sobre cada linha, pois o livro de meu marido era muito difícil de ler.
Aos poucos fui lendo nele o consolo que esperavam me dar nas missas. Fui compreendendo por que não conhecera minha mãe. Por que não tivera pai. Por que meu marido era tal qual pai. Por que eu precisava cuidar carinhosamente da minha madrasta, embora eu não acertasse uma com ela. Por que eu padecia de tão terrível doença. Por que eu não tivera filhos. Por que eu nascera mulher. Fui compreendendo tudo, passando o dedo sobre cada linha.
Quando meu marido descobriu que eu lera o livro, eu já o sabia de trás para a frente. Ele não me açoitou, pois pensava que eu só o lera quando já sabia ler.
Meu marido entrou em colapso muito jovem. Teve uma longa agonia. E eu tratei suas chagas, umedeci seu lábios com água fresca, fiz-lhe sopas. E constantemente lembrava que no livro aprendera as razões de ser filha, enteada, mulher, esposa, oprimida e curandeira. Quando ele morreu, cerrei com melancólico alívio seus olhos e fui-lhe grata pelo livro. Sou-o, por toda a minha vida.
Eu era muito bela, minha filha. Por isso, os homens, qual enxame de zangões, queriam se casar comigo. Resisti bravamente. E isso significou passar fome. Um dia, dei uma de Scarlett O'Hara. Arranquei uma raiz do chão e a devorei com terra e tudo. Tinha gosto de leite e mel.
Minha filha, tive cinquenta anos de cativeiro. E agora já tenho mais de cinquenta anos de liberdade.
Maria deixou que as lágrimas transbordassem suavemente, secou-as com as costas das mãos, e finalmente disse da doença e do remédio que realmente a haviam levado até o atalho da curva. D. Ana, eu tenho um grande, um enorme amor. Mas preciso deixá-lo. Os olhos de D. Ana chisparam, mas com o fogo do olhar dos mestres. Ela sibilou: Maria, você não queira saber quem foi esse homem na sua vida. E manteve o olhar fixo em Maria. Esta arregalou seu grandes olhos negros, compreendendo perfeitamente: não, não quero saber.
D. Ana abrandou. Você tem que abaixar o nariz. Quebrar a crista. E riu, enquanto dirigia um severo mas terno olhar aos olhos negros de Maria. A voz saiu suave: você não quer quebrar a crista... Leia o livro, minha filha. Maria respondeu que sim, D. Ana, vou ler.
Maria levantou-se mais leve, pois o desejo do oásis se dissipara. D. Ana foi mãe: volte quando quiser. Eu estou sempre desocupada. E pegou sua pá de jardim. Maria atravessou de volta o atalho, alcançou a curva, e as visões se clareando: eu já li o livro, D. Ana. Já o li muitas vezes. Eu o li agora, enquanto a ouvia, D. Ana. Eu sei que devo abaixar o nariz para ocultá-lo, já que ele nasceu arrebitado. Eu sei que devo deixar quebrar a crista, pois ela é de penas, nasce de novo. E, segundo o livro, elas vão nascer prateadas, em alusão à sacralidade do feminino. Sim, D. Ana. Cinquenta anos de cativeiro, depois mais de cinquenta na liberdade. Vou baixar o nariz porque não quero baixar o nariz. Vou quebrar a crista porque não quero quebrar a crista. E vou ler de novo o livro.
 
 
A cantora de rádio

Cheila ainda pequenina, já não conseguia ficar quieta no banco da igreja, enquanto se desenvolvia o culto. Os bancos eram de madeira-de-lei, lustrosos, lisinhos, mas lhe pareciam ter pregos. Era aquele toquinho, de sapatinhos vermelhos, meia branca com pom-pom, e irrequieta. Logo descobriram que cantava, com maviosa voz, que declamava, que pregava... Tudo o que fosse no microfone, fora do banco lisinho e lustroso.
A dirigente da mocidade, uma bela professora que, sabe-se lá como, tinha autorização para manter os cabelos curtos, convidou Cheila para participar de seu programa de rádio. Era sábado à tarde, ao vivo, e se destinava ao público crente. As pernas de Cheila bambearam. Mas atrevida, como sempre fora, não ia recuar diante de um caminho aberto.
Então sua mãe a vestiu com esmero, escovou seus longos cabelos até que brilhassem, e seu pai a levou no fuscão café-com-leite.
Quando entrou na casa da professora, Cheila arrependeu-se imediatamente de sua maldita coragem. A casa era impecavelmente limpa, como a sua própria. Mas era tão bela, que parecia não poder ser tocada. Uma sala enorme, com três ambientes, um deles para escutar rádio e vitrola de móvel. Um tapete que, ao ser pisado, afundava. Cheila não foi convidada a conhecer o resto da casa e concluiu que a professora era rica
Esta, aliás muito esbelta, custou, mas ofereceu a Cheila um café com bolo. Sheila viu o café ser feito em um eletrodoméstico até então incógnito para ela. Achou horrível o café. E também o bolo. Nada perto dos quitutes maravilhosos da mamãe. Café de coador, bolinhos de chuva... Eram tempos da emancipação feminina. Da indústria. Do sacrifício do sabor.
Olhou em volta para ver se alguma parede não era de chocolate, a fim de que pudesse se encostar. Ficou muitos minutos experimentando o melhor lugar para esconder as mãos. E a professora corre-que-corre de um lado para outro, preparando-se, atrasada, para o programa.
Saíram. O carro da professora era tão bonito e confortável. Cheila não fazia ideia de sua marca e modelo. Apenas tremia. Aquela gente tão fina a inibia.
O rádio era curioso. Cheila, do chão de seus seis anos, olhava aquela parafernália, cabine, botões, microfone suspenso, dois pratos para os vinis, e se perguntava como é que aquilo ia parar no radinho vermelho de sua casa.
A professora, anunciou, depois de cumprimentar alegremente seus ouvintes com a paz do Senhor. Hoje nossa irmãzinha Cheila abrilhantará nosso programa com seu canto e suas palavras. Todos conhecem esse nosso pequeno tesouro. Cheila parara de respirar. Toda inspiração voara. E um hino que ela ainda não conhecia parecia ecoar na minúscula cabine: se eu pudesse, voava, ao encontro de Deus! Abandonava esse mundo, saía voando, só parava no céu. Mas alguém a puxava pelo braço para o microfone.
Cheila não falou coisa-com-coisa. Gaguejou. Desafinou. A luz vermelha acendia, ela esquecia e falava. A luz verde acendia, ela esquecia o que dizer, silenciava.
A professora gracejou: nossa irmãzinha Cheila é muito criança, está tímida. O Senhor nosso Deus há de abrir-lhe as portas para outra oportunidade. Cheila guardou essa carinhosa avaliação no fundinho da sua alma. Professor é professor, ou não é?
Cheila saiu da cabine, sentou-se só. Parecia-lhe que os adultos tinham reprimendas no olhar.
A volta foi lúgubre. Cheila pensava como seria sobreviver até a manhã seguinte, quando reencontraria seus pais, na escola dominical.
Comeu mais bolo. Naquela casa, como estranhou a menina, não se jantava. Isso reforçou sua impressão de que a professora era rica. Foi acomodada num colchãozinho no chão, num grande e exuberante quarto vazio. De tacos sintecados. Não foi sua noite mais dura. Foi apenas uma das muitas noites claras, insones.
Manhã de domingo chegou, mais um café insosso e o reencontro da família, do ninho... Mesmo fracassando no rádio, porque naquele tempo não havia preparação cultural para cantoras como ela, Cheila foi fotografada com toda a classe de crianças da escola dominical. Que eu saiba, Cheila nunca mais foi cantora no rádio.
 
 
 O porre dos poetas
 
Olga Liz, Edilson Luz e Otávio Campos se encontravam toda noite no mesmo copo-sujo da quente e úmida cidade. Embora os açaís e os sorvetes fossem fortes concorrentes, a cerveja, afinal de contas, é preferência nacional. As constantes chuvas vespertinas não impediam a frequência dos encontros, de domingo a domingo. Poder-se-ia considerá-los alcóolatras, não fosse o fato de que só bebiam muito quando o tema da conversa era muito grave.
Nenhum deles fizera sucesso, embora escrevessem poesia desde a escola secundária, que frequentaram juntos. Daqueles tempos, lembravam as expedições ao cemitério, os fins de tarde na praça da estação, vendo o sol se pôr por trás do caudaloso rio, os sucos de cupuaçu, os sonhos com goiabada vendidos pelos ambulantes por sobre do muro da escola.
Depois dos quarenta, Olga abandonada por seu marido e Edilson e Otávio abandonados por suas esposas, fizeram um pacto: vamos nos encontrar toda tarde, como nos tempos de escola, para afogar as mágoas. Diremos nossos poemas uns para os outros, discutiremos os grandes e pequenos temas do nosso tempo. Até escreveram nuns guardanapos uma espécie de estatuto da sociedade de poetas. Olga guardou a curiosa coleção de guardanapos para a posteridade.
Firmaram o estranho acordo de não convidar mais ninguém para participar da sociedade. Edilson argumentou, em prol dessa tese, que não estavam decidindo pôr fim à solidão, no copo-sujo, apenas porque eram poetas, mas principalmente porque tinham vivido juntos a juventude. A época em que sonhavam viver da poesia. A época em que se dedicavam à transformação do mundo como ativistas.
Assistiram Je vous salue Marie no corredor da universidade, quando a obra estava proibida. Cantaram no gramado da universidade, observando estrelas, junto à fogueirinha de papel. Lutaram pela eleição dos reitores de universidades. Participaram de uma antológica turma de calouros, que nem o tempo desfez. Chegaram a dar espetáculos artísticos, que os colegas veteranos pagavam uma quantia simbólica para assistir. 
Encontravam esporadicamente parte expressiva da turma, mas a sociedade era exclusivista. Apenas para os poetas que escreveram juntos na escola secundarista.
Era domingo, Dia Internacional da Mulher. Edilson e Otávio chegaram primeiro, e Olga se demorava. Otávio fez piada: vai ver aquela traidora arrumou namorado e as homenagens do dia estão se estendendo... Edilson fez cara de incrédulo e perguntou o que esperavam para brindar, já que a cerveja estava até estragada, de tão gelada. Perguntou: você fez homenagens a alguma mulher hoje, Tavinho? Otávio tirou o sorriso sarcástico do rosto e segredou: eu tinha várias mulheres para homenagear. Não sabia era como. Edilson tomou mais um gole e fez tom sério: fiquei na mesma situação que você.
Nisso Olga chegou. Traidores, vocês brindaram sem mim por causa de um atraso de minutos? Otávio fez sala: nós esperamos um pouco Olga, pois nessa sociedade as damas sempre têm prioridade. Mas você está sentindo esse imenso calor? Olga sorriu: estão perdoados.
Logo que Olga sentou, e brindaram todos juntos, Edilson foi direto ao ponto: como foi o seu Dia Internacional da Mulher, Olga? A poetisa sorriu matreira: foi lindo! Começou na sexta-feira. E durou tanto hoje, que me atrasei. Imploro suas desculpas, meus caros.
Otávio e Edilson trocaram um rápido olhar, ao que ela abriu os braços e gesticulou: não, não, não é namorado. Eu estive enfurnada em meu quartinho todo o sábado e o domingo. Então, vocês devem estar perguntando o que houve de excepcional no meu Dia Internacional, não é mesmo? Pois vou lhes contar.
Era sexta-feira, eu estava na repartição, e fomos chamados pelo superintendente para um lanche especial. Todos sabíamos que só podia ser confraternização pelo Dia Internacional da Mulher. Fomos assim, meio com ar de ô vida de gado, mas fomos. Uma mesa grande fora montada, coberta com toalha festiva, onde havia tudo o que nós adoramos comer, mas não comemos por causa da dieta. Um colega poeta leu sua homenagem. Bela, sim, sim. Há outros maravilhosos poetas como nós por aí. E os rapazes nos deram rosas em botão, em cores diversas. Não sei como, chegou para mim justamente uma rosa amarela, a que eu mais gosto.
De volta à repartição, brinquei com Flavinho: vocês são espertos, hein? Eu não vi nenhuma movimentação, e vocês fizeram uma gostosa festinha! Flavinho então me disse: só tivemos uma dificuldade – escolher o presente. Eu, é? Por que? Flavinho explicou que pretendiam investir apenas um pequeno recurso na compra do lanche e das lembrancinhas. E que tiveram acaloradas discussões até chegarem à conclusão que a melhor lembrancinha seria o botão de rosa. Segundo Flavinho, o poeta argumentara: a flor vai murchar rapidamente. Mas, para uma mulher, será o gesto mais delicado.
Otávio e Edilson se entreolharam mais longamente. Para não engolir em seco, sorveram grandes goles de cerveja. Otávio profetizou: é, acho que hoje é dia de porre. E perguntou a Olga se o poeta estivera certo.
Olga sorriu e falou, afogueada: depois que vivi o dia de hoje, chegando aqui atrasada, posso dizer que o poeta estava certo. E fez cara de mistério.
Edilson disse ao garçom: aê, Fernando, desce mais uma e se prepara que hoje nós vamos tomar uma caixa. E, sarcástico: e então, senhora Dona Olga, vai ou não vai desvendar o mistério?
Olga riu como quem não se faria de rogada, e desatou a matraca. Na manhã de sexta, sabe, eu passei na Igreja para uma breve meditação antes do trabalho. Uma senhorinha que é ministra da eucaristia estava na porta com uma caixa cheia de vasinhos de flor. Quando eu saía, me ofereceu uma, pelo Dia Internacional da Mulher. Peguei uma roxa e segui a pé, olhando o vasinho de flor e pensando: como vou cuidar de mais essa, se não estou conseguindo cuidar das que já tenho? Mas não me demorei muito nessa queixa. Sabia que daria conta daquela também. À tarde, ganhei o botão de rosa, ouvi as falas de Flavinho e arquivei.
Passei o sábado de cama, fazendo com as sombras da mente a dança da solidão. Confesso, estava em autocomiseração. Parem de me censurar. Por mais que seja mais uma data para o consumo, uma homenagem que confirma a situação desfavorável da mulher, eu não estava querendo passar o domingo em brancas nuvens. Isso mesmo, Edilson, eu sou romântica como você. Arre!
Edilson levantou o copo: Olga... precisa gritar que o único grande poeta aqui é o Tavinho, né? Que eu e você não passamos de versejadores sobre os amores condenados a nunca vicejar.
Otávio acabara de virar um copo. Me poupem de ser um grande poeta. Sou um reles aspirante de copo-sujo. No dia em que o povo do bar parar para ouvir um poema meu, posso mudar de opinião. E encheu os três copos, dizendo: e então, Olga? Estou ávido para saber de seu domingo.
Pois é. Comemorou Olga. Acordei mais bem disposta no domingo, sabe? Fui até meu botão de rosa amarelo e pensei: vou fotografar, porque ele se abriu estando na água, nunca mais vai estar lindo assim. E não resisti. Postei na rede social ainda de madrugada.
Edilson fez um muxoxo. Ainda bem que, na minha profissão, não posso participar de redes sociais. Ouço cada notícia trágica! Você devia parar com isso, Olga!
Quê que tem? Olga levantou os ombros. Basta ter certos cuidados, como, por exemplo, postar flor! E soltou uma longa e gostosa gargalhada. Edilson e Otávio fizeram olhares interrogativos e Olga não se fez de rogada: continuou. Resolvi, então, passar o dia na rede social, ouvindo música, vendo fotografia, lendo bons textos, se fosse possível, ao invés de continuar o Dom Quixote.
Otávio não se conteve: você tá lendo Cervantes de novo, Olga? Ela o olhou irritada e respondeu, de bico: da segunda vez prá frente é que fica bom! E virou para Edilson: então, eu comecei a ver que minha página tinha uma profusão de flores em mensagens para as mulheres, ou delas mesmas. Pensei no meu mestrado, sabe? No jornal feminino que estudei, as flores quase saltavam vivas sobre minhas fichas, gritando: pense sobre nós! Eu escrevi só um cadinho. Que hipocrisia, esse negócio de mulher-flor, flor-mulher!
Edilson e Otávio se entreolharam, sinal de continuarem boiando, mas se voltaram rapidamente para a falante Olga: de vez em quando, pintava assim uma reportagem sobre mulheres na África e até a Bruna Lombardi conseguiu me surpreender: lugar de mulher é onde ela quiser! Adorei. E comecei a curtir os posts de um feminismo assim mais robusto, entendem? Cara, foi lindo! Li cada coisa! Lembrei de Rosa Park, de Simone de Beauvoir, de Guiomar Torresão. Vi mulheres da África vestindo roupas das antepassadas, assim como mulheres da África com o rosto mutilado. Vi marchas de organizações trabalhistas, vi manifestações culturais, um transgênero vestido maravilhosamente de noiva. Cara, eu me refestelei.
Otávio zombou: você não sabe que as políticas de privacidade das redes sociais fazem com que de repente o mundo pareça ser para você apenas aquilo que você curte e compartilha?
É claro que eu sei, né, Tavinho? E também sei que aqui você é o único grande poeta. E deu língua para Otávio. Mas olha, o que mais me impressionou foi ver, numa manifestação robustamente feminista, uma palhaça que tinha no lugar do chapéu uma flor. Eu caí num torvelinho: flor, flor, flor. Por que mulher e flor?
Edilson disse gravemente: é porque querem que a mulher, universalmente, seja delicadeza...  E virou um copo.
Peraí, disse Olga. Pensei muito e acho que tenho outra interpretação!
Otávio indicou que aquela fase do debate estava encerrada: Fernando! Desce mais uma. E se prepara que, pelo jeito, hoje vão ser duas caixas.
 
A pantomina
 
Um engenheiro visionário, desses que enxergam muito à frente, decidiu abrir uma engenharia, estando o país em crise. Seus irmãos, que não entendiam visionários, comentavam à boca pequena que o primogênito entre todos eles, sempre considerado tão inteligente, parecia estar batendo os pinos.
De fato, no começo, era um predinho aqui, uma obra pública ali, e o visionário trabalhando como empregado de outros. Mas, estranhamente, amanhecia sempre muito alegre, e aos incrédulos dizia: sou filho da esperança.
Duas décadas se passaram nessa lenga-lenga. E nada do visionário desistir. Belo dia, o governo abriu uma licitação para obra faraônica no remoto sul do país. Terra de ninguém, açoitada por constantes tornados e geadas. O país estava quebrado, as estradas não chegavam até o local e o visionário não tinha currículo para concorrer.
Os irmãos promoveram um almoço em família para tentar demover o primogênito de seu intento. Tudo em vão. Ele ainda pediu uns atestados da empresa do irmão e se inscreveu na concorrência. Por falta de outros visionários concorrentes, venceu. O concorrente a constar nos documentos, além de não ser visionário, era fake. Uma prática corrente nas concorrências do país.
Moveu montanhas, mas tornou realidade a obra faraônica. E enriqueceu da noite para o dia. Desde então, foi recorde atrás de recorde. Ele sempre visionário, enxergando muito à frente.
Veio o capitalismo financeiro e o engenheiro não teve dúvidas: decidiu abrir o capital. Contratou consultoria e viu que, dentre outras mudanças na gestão e nos processos, precisaria abandonar o modelo monárquico em que trabalhava, e simular uma democracia participativa empresarial.
Os consultores trabalharam noite e dia para construir um texto-base, dourando o passado da empresa e dotando de brilhos seu futuro. Tudo o que a lei mandava, mas que não era cumprido, aparecia no texto-base. E, para não deixar dúvidas, constava da colorida capa a logomarca do sindicato. Imagem é tudo.
Os peões de todo o país foram convocados para um congresso interno, em que o texto-base deveria ser avaliado e aprovado. Quando leram, todos pensaram exatamente a mesma coisa: precisamos dar um jeito de dizer amém a tudo isso aqui, ou estamos no olho-da-rua. Pois é óbvio que não temos estabilidade no emprego e a fila de candidatos às nossas vagas é grande.
Um peão visionário começou a espalhar aos pés-dos-ouvidos dos colegas da obra faraônica que o melhor a fazer era encenar o congresso. Ele chegou a propor algumas noites de ensaio, mas os colegas mostraram a inviabilidade da proposta, por causa das horas-extras que todos precisavam fazer para sobreviver. Mas reliam o texto e, conforme iam surgindo novas e criativas ideias, espalhavam-nas através da rádio-peão. Combinaram algumas palavras-chave, ou senhas, que, quando pronunciadas, deveriam engendrar calorosos aplausos.
Chegou o grande dia. Os consultores estavam um tanto tensos, pois sabiam tratar-se o texto de uma maquiagem da realidade. E tudo piorou quando souberam que o engenheiro visionário estaria presente ao evento daquela que fora a sua obra-marco: a faraônica.
Mas os peões chegaram muito alegres, barbeados, alguns com colares havaianos pendurados no pescoço. Um deles foi até mais atrevido e chegou ostentando um nariz de palhaço. Encontraram um farto lanche e interrogaram-se, silenciosamente, por que não havia vale-refeição.
A leitura e aprovação do texto foi uma alegria. Um verdadeiro carnaval. Quando se lia cada item, verdadeiramente mentiroso, todos batiam palmas e davam vivas ao engenheiro visionário. Concordaram que havia uniformes e capacetes para todos, bem como ginástica laboral; que a cada hora de trabalho, podiam fazer um intervalo de dez minutos, que não tinham conhecimento de um só acidente de trabalho em toda a história da empresa. Ovacionaram quando foi dada como fato a inexistente participação nos lucros que, a partir de então, tornar-se-ia oficial.
Os consultores ficaram de queixo caído com tanta animação. Já tinham na manga os nomes indicados para a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho. Mas, para constar, perguntaram se havia candidatos. Os próprios indicados levantaram simultaneamente as mãos e foram aplaudidos de pé pelos colegas.
Para descontrair ainda mais, o peão autor da ideia da encenação sugeriu que os novos membros da Cipat desfilassem como rainhas da primavera. Sugestão recebida com grande entusiasmo por todos os congressistas.
Os peões eleitos titubearam por um segundo, temerosos de que sua macheza fosse posta em questão. Viram entretanto um piscar de olhos do peão líder, aliás anarquista, e deram duas voltas rebolantes pelo palco, sob os respeitosos assovios e vivas dos colegas.
O engenheiro visionário sorteou brindes, conferiu medalha de honra ao mérito aos peões-padrão e convidou a todos para um farto e suculento churrasco.
Depois, deu no jornal da empresa que, em todo o país, o congresso interno fora um sucesso. Os peões da obra faraônica viram as fotos dos membros da Cipat, de todas as principais obras da engenharia no país, desfilando como rainhas da primavera. Ficaram tristes ao constatar que não houvera nenhuma originalidade ou ineditismo em sua pantomina. Mas a participação nos lucros realmente passou a existir. E até hoje não há um só registro de acidente de trabalho na bilionária engenharia.
 
O imortal
 
Juvenício era analfabeto de pai e mãe. E em antes de dezoito anos, não pôs sapatos nos pés. Morreu-lhe o pai, Juvenício foi à enxada. E o dinheiro não cobria nem o fundinho do cofre. Finalmente, resolveu dar ouvidos à mãe, que sempre dizia: estuda, fio! É sua única chance.
Isso era dantes. Estudo fazia diferença. Agora não, tá mais democrático; menino sem escola pode ganhar mil vezes mais que seu professor. Fácil, fácil. E é isso que importa.
Juvenício fez Mobral, madureza... Eu não disse? Essa história é antiga! De repente, viu-se no Mestrado em Literatura. Olhou em volta e falou sem voz: só tem sangue-azul aqui! Só eu de preto! Vou acabar na escravidão.
Sentou desconfiado, dormia nas aulas de Latim, mas não sem antes aprender que era um homo sapiens sapiens sapiens... Padre Grimaldi entendia, sabia que Juvenício trabalhava e estudava.
Quando leram os escritos engarranchados de Juvenício, os professores piraram. Até então, perguntavam-se o que fazia ali aquela estranha figura. Houve até um colega que, bêbado, numa festa de confraternização da turma, resolveu falar o que achava de cada mestrando. Chegando em Juvenício, ele engoliu em seco e baixou o tom de voz: ninguém sabe o que quer o Juvenício. Afinal, Juvenício ouvia falar de Dostoievsky e pensava: ainda tenho muito que ler...
Deu metade do mestrado, Professor não aguentou: Juvenício, venha direto para o doutorado! Eu, hein? Pensou Juvenício. Só tem sangue-azul...
Deixou o diploma do mestrado na casa de um amigo fiel, pois lá o papel teria muito mais utilidade. E caçou um ranchinho num fim de mundo, onde, para se chegar, era preciso passar pelas seguintes placas, nessa ordem: Vendo Barato; Vende-se Chacra; Chácara do Poeta; Rua da Lagoa; Rua da Cachoeira.
Juvenício ficou no início desta. Assim, quedava incógnito aos raros turistas que desciam à cachoeira. E nos dias em que não dava turista, ele descia e molhava os pés male-male na beira da fria prainha. Só queria ouvir o som, o som, o som...
Quando acabava o caderno, Juvenício, a muito custo, ia à padaria e comprava muito pão. Na realidade, o seu interesse era o papel do pão. Pois nele escrevia delicadas letras de gentileza. Os pães, comia alguns no primeiro dia. Depois fazia pudim, rabanada, dava aos cães de rua.
Professor tanto escavou, que não achou Juvenício na Rua da Cachoeira? E blá-blá-blá. Leu uns cadernos do ex-aluno, pirou. Juvenício, temos que publicar essa obra! Ela é universal! Juvenício deu uma baforada, olhou de esguelha e disse: desde que você não venha aqui pagar os direitos autorais... Professor estranhou, mas respondeu: então tá. Se você não quer ganhar dinheiro...
Juvenício lembrou do fundo do cofre e pensou: quero lá saber o que os leitores vão pensar do que eu escrevi? Escrevi há tanto tempo... Nem lembro mais o que tem nesses cadernos. Professor não entende, coitado. Que o bom do caminho é caminhar. Fica só preocupado com a nota da Capes.
De vez em quando sentia tédio quando via o Professor abrindo a porteira. Mas lhe cedia os cadernos já preenchidos. Que, aliás, o motorista do ônibus comprava e trazia para ele, quando retornava da cidade.
Mas um dia, o tempo fechou. Apareceram na porteira de Juvenício uns quatro homens de beca preta e estranhos chapéus, que pareciam de formatura. Disseram: Juvenício, viemos convidá-lo para ser um imortal! Juvenício fingiu de égua e disse: seu moço, o senhor me adesculpe, mas eu pretendo morrer morto, mortinho, quando a minha hora chegar. E enquanto os senhores desfiavam sua cantilena, ele imaginava nuvenzinhas, passarinhos saindo de sua própria orelha, e até lembrou uma canção de um outro maluco beleza, como ele: “não planto capim-guiné pra boi abanar rabo”. Sentiu saudade do antigo vinil, que deixara para trás ao mudar-se para perto da cachoeira.
Os elegantes senhores pensaram todos ao mesmo tempo: será que esse homem genial não sabe o que é ser imortal? Ou erramos de endereço? Tudo assim, pensamentos sincronizados. Foram ver se achavam outro Juvenício nas redondezas. Suando em bicas, naquelas roupas pretas sob o sol do verão.
Juvenício picava seu fumo de rolo e pensava: aqui já não é mais seguro pra mim. E agradeceu aos céus por só ter quatro caixas. Mudou, ninguém viu. Morreu morto, mortinho, aos cento e dois anos de idade. Não sem antes mudar muitas vezes de endereço porque vinha a imprensa, a demência, a maledicência. O Professor sempre o achava e um dia ele brincou: Professor, o senhor devia ter feito arqueologia.
Tem uns abestalhados aí dizendo que ele é imortal. Mas tá lá, morto, mortinho, e fazem fila para passar junto ao lugar que representa a sua memória.
 
Bandeira de roça
 
Uma vez, num recôndito do mar de morros, me contaram uma interessante história. Que uns anos aí pra trás, pela época do Natal, mais precisamente durante o Advento, o povo juntava e fazia umas bandeiras de roça.
Acreditava-se que era bom comemorar a chegada de Jesus Menino com todas as roças limpas. Então, o raro tempo livre do final de semana era para um ajuntamento de enxadas, foices, rastelos, panelas e sanfonas. 
A capina da roça era ritmada pelos cantos de trabalho, milenarmente aprendidos. Emaweni webaba / Silale maweni / And we are homeless, homeless / moonlight sleeping on a midnight lake*...
E terminava com esperados festejos: muita comida preparada pelas mulheres que não estavam envolvidas na limpeza da roça, angu de milho branco, frango ao molho, uns bons capados, a couvinha das hortas, muita quitanda, café e a cachacinha. 
Mais ainda, um ingrediente fundamental: o sanfoneiro e seu alegre “for all”. Difícil saber onde é que essa gente juntava energia para varar a madrugada e até amanhecer na função. O tempo passou. As bandeiras de roça foram sumindo, porque também as roças. Os fazendeiros acharam boa a ideia e passaram a contratar o povo para fazer bandeiras de roça em qualquer época do ano. O povo ganhava um mísero dinheirinho, e também a comida e o forró. Cantava pra trabalhar, dançava, comia... 
Pena que Jesus Menino começou a encontrar algumas roças remanescentes sujas, quando voltava a cada ano. O que tem remédio. 
Agora é hora de limparmos nossas roças, mesmo nas cidades. Deixando-as prontinhas, sem excedentes, para a data que chamamos natividade.
Com nossos excedentes, vamos presentear.
 
Nêga Rita
 
Nêga Rita nasceu aí pelos finzinhos da escravidão no Brasil. Lá nos calcanhar do Judas, no meio de um mar de morros, como reza a tradição. De pequena, já era a pirraça em pessoa. 
Nigrinha tinhosa! Ralhava sua mãe. 
Com sete anos, já dava uns bons petelecos em qualquer menino que se metesse a besta com ela. Quando mocinha, percebia que o Sinhozinho gostava de levar as negrinhas pros cantos, à força. Tinha as que iam de boa vontade também. Nêga Rita era de um país onde branco gostava de namorar negro. E vice versa. Apesar de haver racismo e forte. Uma democracia racial pra inglês ver.
Decidiu seduzir o Sinhozinho. Aos 14 anos já estava prenha. Nigrinha tinhosa! Ralhou sua mãe.
Sinhozinho ficou apertado. Ia nascer mais um mulatinho. E Nêga Rita avisou: óia, se'ocê num me arrumá minha furria, minha vó vai te botá de cama. 
E a velha Rita. Todos sabiam de seus poderes para o bem de uns e para o mal de outros. Porque não há bem que seja bem para todos. E nem mal que a todos prejudique.
Além do mais, Sinhozinho gostava da Nêga Rita. Bonita, a luxenta da neguinha. Gostava de pedir a ele alguma bugiganga das irmãs sinhás. E desfilava toda toda. De colarzinho, anel, fita no cabelo. Daí as brigas homéricas entre os jovens irmãos na casa grande.
E a barriguinha da Nêga Rita ia crescendo, o povo já falava mal da menina. E nada de Sinhozinho arrumar a carta.
Pois não foi Nêga Rita conversar com sua avó? Vó, quero aprender a benzer. Velha Rita olhou para ela fuzilando. Mas a sabedoria lhe avisou. Deixa essa nigrinha meter a mão em cumbuca prá lá.
Nêga Rita começou aprendendo segredos para o nascimento de seu mulatinho. E foi aprendendo as plantas. As palavras. Até que um dia, Sinhozinho caiu de cama.
Na fazenda corria à boca solta que o Sinhô podia perder seu primogênito. As namoradinhas do Sinhozinho tinham opiniões diversas. Algumas rezavam por sua cura. Outras por sua alma. Nêga Rita só queria ver quando chegava sua furria.
Não demorou. O Sinhô a chamou pra conversar. O escritório do homem era mesmo um luxo, como as mucamas diziam. Livros pra todo lado e uma coleção de armas.
Pois é Ritinha. Meu filho está com medo de morrer. Então ele fez uma promessa a Nossa Senhora Aparecida, de libertar a sua família, esperando a cura. Nêga Rita beijou a mão do Sinhô. Escorreu uma lágrima. Mas era de crocodilo. E foi saltitando contar à mãe.
A mãe pensou que Nêga Rita fosse doida. Furria pra quê? Pra todo lado, naquele mar de morros, só tinha fazendeiro e capitão-do-mato. Mas os três irmãos de Nêga Rita toparam o desafio: nóis vamo comcê.
Sinhô deu os papeis de Nêga Rita, que entregou orgulhosa o de sua mãe. E bem cedinho antes do sol nascer. Ela e seus irmãos maiores saíram. Matulinha nas costas. A encontrar o destino.
Depois que a comida acabou, e o alimento de cada dia era o que Deus dava, ainda caminharam muito. Até que não havia mais trilhas. E era preciso fazer picadas na mata. De repente, Nêga Rita vaticinou. O lugar é aqui. Os irmãos olharam interrogativos. 
Tem água perto. Tô sentindo o cheiro.
Andaram em círculos, encontraram o corguinho e boa área plana. Num fundilho do mar de morros. Ali construíram a primeira casinha de capim barreado.
Nêga Rita pariu sozinha seu mulatinho José. E plantando e colhendo. Encontrando às escondidas algum negão das fazendas vizinhas. Teve mais quatro filhos. Sozinha. E nunca casou.
A escravidão já estava no fim mesmo. Muito negro alforriado começou a se mudar pra perto do clã de Nêga Rita. 
Editada a dita Lei Áurea, a negrada começou a visitar a cidade mais próxima. Ver se complementava a renda pra comprar um ou outro putucum. 
Chegavam com seis sete cavalos carregados de capim. Capim mumbeca, paina, marcela, taboa. Pra fazer colchão acolchoado e travesseiro. O povaréu da cidade olhava aquele tanto de negro junto e comentava. Onde esse povo vive só pode ser um quilombo. Pronto. O nome pegou.
Nêga Rita voltava toda faceira da cidade, chita nova, sandália no pé, pulseira vermelha. E todos sabiam. Era a manda-chuva do quilombo. Uma espécie de rainha. Uma rainha.
Tão tinhosa que arrumou título de propriedade para todos os seus protegidos. Quase súditos. Sabe lá por quais meios. Nesse caso importavam os fins. Ela tinha um pequeno país negro no coração do Brasil.
A negrada plantava milho e feijão. Engordava porco e criava galinha, pato. Coletava capim e frevia nos bailes. Era uma vida difícil viu.
Mas era livre. Sanfoneiro era tipo o vice-rei. Estava abaixo da Nêga Rita.
Ai de quem se metesse com ela. Se ela olhasse a barriga de uma grávida.  A futura mamãe a convidava para parteira e madrinha.
Escolhia os afilhados.
Contam que ensinava a todos quantos. Não é cuié Teodoro. É talher
E o mulatinho José? Era a menina dos seus olhos. Para casar teve que enfrentar a má vontade da mãe por oito longos anos. Tipo Jacó na Bíblia. E depois de casado amargou os caprichos de seus ciúmes. Só morta Nêga Rita parou de meter a colher na vida conjugal do filho.
Uma negona. Admira-se uma contraparente. E queria ser chique. Queria ser bajulada. Imagina.
Nêga Rita encantou-se. Ao invés de virar nome de rua, virou sobrenome de homem. Antônio Rita, Zeca Rita, Joaquim Rita.
Sua negrada ainda está no quilombo. Planta colhe ferve nos bailes. Lembra de Nêga Rita com um arrepio de medo. 
Não sabe que ela foi uma Zumbi de saias. Uma rainha à moda de África.
 


 Conversa no ônibus

Carola gostava de viajar calada. Se possível, até dormir. Seu primeiro marido a proibira de ressonar logo que o carro se punha em movimento, como lhe permitira sempre seu pai. Assim, ela perdeu o delicioso hábito de cochilar aos solavancos.
Vários maridos depois, lutava ela para recuperar o hábito, quando outra passageira do ônibus pediu licença para sentar-se a seu lado. Carola fez que sim, tenha a gentileza, e voltou a fechar os olhos, desejando a madorna. Mas quando os abria, que um hábito perdido não se recupera assim em qualquer viagem, a vizinha de poltrona puxava um simpático assunto.
Certa altura, não deu mais para Carola ser monossilábica. Dissera a passageira, horrível andar de ônibus, não? Ao que Carola respondeu: vivi tempos piores. Hoje a viagem parece durar menos, tem ar condicionado e a gente não divide o espaço com as galinhas... Só é chato que às vezes se precisa viajar em pé. Mas alguém tem que viajar de ônibus, pois onde vai caber tanto carro? Vê-se que Carola não estava em seus melhores humores.
A vizinha mudou de assunto. Diz que vai chover, né? Estou torcendo que chova, mas depois que eu chegar em casa... Já no limite, Carola respondeu. Pois por mim pode chover a cântaros. Desço no meu ponto, de mala e tudo, e vou pra casa na água, chutando a enxurrada. Você já viu como o horizonte está branco de tanta fumaça? Quer ver, olha ali pela janela, ó! O talude da indústria foi varrido pelas chamas, a mata do sítio, sob as árvores mais robustas, está carbonizada.
E Carola desandou. Foi apontando os sinais de queimada por toda parte à esbugalhada vizinha.
Deus tá no controle, defendeu-se esta. E Carola disparou. É, mas a parte que Ele deixou prá gente, a gente não tá fazendo, né?
Era a hora da vizinha descer. Tchau, prazer. Carola não se preocupara em saber o nome da interlocutora. Estava preocupada demais com cochilos e queimadas.
Minutos depois, o céu desabou. Carola desceu em seu ponto, de mala e tudo, encharcou-se na tempestade e chutou a enxurrada. Singing in the rain... I'm singing in the rain... Vai ver que Deus estava no controle.
 
O cubículo de Dostoievsky
 
A escrevinhadora morava num quartinho apertado. Uma pequena cama, colchão emaciado, uma mesa poeirenta, caixas onde se empilhavam livros, sapatos, enfeites de mesa. A minúscula janela mal deixava entrar ar. Mas era um portal de pernilongos. Um cinzeiro de ex-fumante rolava daqui pra lá... Mas trazia a imagem de Che, como se fosse um objeto da pop art. Não podia ser descartado. O rabicho do ferro de passar promovia repetidos tropeços. Bolsas, peças de roupa pelo chão. E ela não queria chá, nem café, nem máquina de lavar. Não queria banho após exaustiva jornada. Apenas libertar a imaginação daquele cubículo que criara à maneira Dostoiévsky. Seu exílio. Lugar de acachapar a inteligência, de desfolhar a sensibilidade.
Vez por outra, a escrevinhadora punha mal traçadas linhas no papel. Mais crédula, lembrava outra escrevinhadora, antes dela, que precisara esconder-se no telhado, à noite, para criar seres e sombras com palavras.
Uma outra vez, a escrevinhadora fez sucesso. A jornalista sugeriu, para seu pálido susto: podemos fazer uma foto em seu escritório?


  
 
 


 
 
 
  

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