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Medo de cemitério

Written By Ana Claudia Gomes on quinta-feira, 18 de setembro de 2014 | 05:28

Cemitérios para que não esqueçamos.


A professora titular convidou a professora particular para dar um giro com seus alunos pela velha cidade. Para perceber o ambiente e aprender. Para identificar os elementos de memória e assim referenciar a comunidade. A professora particular aceitou de bom grado o convite. Desde que pudesse levar seu aluno particular. E assim foi feito.
Os estudantes de ambas as professoras dispersavam, concentravam, registravam instantâneos com seus dispositivos móveis. Começaram desinteressados mas, conforme emergia a vida, o sentido, suas questões juvenis, tornavam-se mais atentos, participavam e brincavam mais.
Já quase ao final do giro, o cronômetro indicando que restavam poucos minutos, um grupo de estudantes pediu à professora particular: podemos ir ao cemitério? Antiga amante de cemitérios, a professora particular disse que sim, claro, no que foi perfeitamente apoiada pela professora titular.
Então, professoras e estudantes subiram a colina no topo da qual se encontrava o velho e degradado cemitério. Alguns poucos estudantes manifestaram repúdio à experiência e lhes foi franqueado não entrar.
O estudante da professora particular anunciava que passava mal desde quando a visita ao cemitério fora anunciada. Quero ir ao banheiro, disse ele, e a professora particular mal se lembrou de que essa é a senha para quando seu aluno está sofrendo. A dor se manifesta pelo descontrole dos esfíncteres.
Mas quando a professora cruzou o umbral do cemitério, seu aluno a enlaçou fortemente pela cintura, num choro convulsivo. Eu não quero entrar aí. Você não pode entrar aí.
A professora particular lhe perguntou se tinha medo de cemitérios, e ele respondeu com boca de pavor. Eles vêm à noite puxar o pé da gente, e a gente sonha sem parar! A professora particular deu meia-volta e quis fazer uso dos ensinamentos da racionalidade. Era hora de aula. Quem lhe ensinou isso, perguntou ela? Ah, eu vi na televisão. Mas olha, querido, nem tudo o que se passa na televisão é verdade! E saiu-se com um chavão: a gente deve temer mais os vivos do que os mortos. E o menino chorava a bandeiras desfraldadas, como criança que é.
A professora titular entrou em cena e disse à colega: pode entrar, eu fico com ele. A professora particular continuou subindo a colina, fazendo seus instantâneos e voltando aos cemitérios da infância. Um cemitério catarinense, cheio de palacetes e jardins para os mortos, limpíssimo, envidraçado, dava vontade de ajoelhar-se e orar. Mas sua mãe, que a guiava, também lhe ensinava o medo de cemitérios.
O primeiro velório, de uma criança. A professora particular lembrou que reuniu seus coleguinhas e lançou um desafio: quem morre fica frio ou quente? Todos queriam a resposta da pergunta, mas ninguém se dispunha a averiguar. A professora particular, atrevida como sempre fora, dispôs-se a ir. E foi com uma certeza: os mortos eram quentes, pelando. Quando ela tocou a face do anjinho morto e sentiu o gelo, enregelou-se. A morte era fria. Voltou assustada para contar a nova aos ainda mais assustados coleguinhas.
Mas a professora venceu o medo da morte. Na adolescência, visitava cemitérios rondonienses para escrever poesia. Acompanhada de todos os aspirantes a poetas de sua escola secundarista. Encantava-se com as velhas fotografias, especialmente as de meninas mortas. Achava inspiradora a expressão "Aqui Jaz". Quando mãe, levou seu filho bebê ao sepultamento do bisavô, escandalizando toda a família. Os ensinamentos sobre o medo à morte jamais cessaram...
Findo seu giro, no qual a professora particular viu os alunos da professora titular visitando os túmulos de seus entes queridos, investigando o cemitério, entrevistando seus funcionários, ela viu seu aluno mais tranquilo, brincando com um papagaio que estivera assentado sobre um enorme feixe de lenha. Seu aluno e o papagaio brincavam um com o outro, como velhos conhecidos. Riam-se. Foram objeto de fotos e vídeos.
A professora particular tomou seu aluno pela mão. Ele olhou assustado para a mão que o conduzia e disse: professora, você não se esqueça de tomar banho quando chegar em casa. Só então a professora percebeu que o medo de seu aluno se transformara mais uma vez em xixi.
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