Paisagem de van

Written By Ana Claudia Gomes on quarta-feira, 29 de abril de 2015 | 02:17

Você pode se considerar uma pessoa privilegiada, se tem uma amiga arquiteta urbanista que resolve lhe visitar. Especialmente se ela lhe perguntar qual ônibus chega à sua casa.
Você poderá se atrapalhar e dizer que vai pesquisar. Então, quando a sua visita chegar, ela a encarará com expressão brava e dirá: você tem obrigação de saber dos ônibus que vêm à sua casa e para onde vão os ônibus que passam pela sua casa. Porque o transporte coletivo deste país só vai melhorar quando a classe média for sua usuária.
Se isso acontecer com você, pode ser que você enfie a sua viola no saco e admita que não consegue viver sem seu automóvel. Porque, dizem, o automóvel é a paixão de todo brasileiro. Não sei se antes ou depois da bola.
Contudo, mesmo enfiada no saco, a viola continuará lá. E quando você pegar engarrafamentos na sua cidade, você terá tempo de olhar em volta e ver que há um motorista sozinho em cada automóvel. E que eles buzinam diante do semáforo vermelho. Então você poderá se lembrar de uma antiga animação do Pateta: senhor motorista e senhor pedestre. Senhor motorista é um grosso. Ele, em seu carrão importado, poderá ter o desplante de botar a cara pela janela e gritar que você tire a sua "carroça" da frente. Senhor pedestre, pelo menos na animação, é um gentleman.
Uma bela tarde, você não terá de cumprir horários proletários, e resolverá experimentar, como turista, o transporte coletivo da sua cidade. Poderá acontecer de você pegar uma van da região estudantil. Haverá um fino livrinho em sua bolsa leve, mas você não terá lugar para sentar e logo será capturada pela paisagem da van. Uma moça com cara de futura advogada se oferecerá gentilmente para levar a sua leve bolsa. Você sorrirá e dirá obrigada. Então você verá os outdoors, os córregos poluídos, um arranha-céu onde outrora houvera uma linda casinha art dèco. Você ouvirá uns eruditos passageiros falando mal da Presidenta e pensará: não concordo com uma palavra do que eles dizem, mas lutaria até a morte pelo direito que eles têm de dizê-lo. E então, porque você estará sendo aprendiz de urbanidade, você descobrirá que as vans de hoje em dia têm música ambiente. E Marisa Monte cantará ao seu ouvido, com voz de uirapuru: quero que você seja feliz... Hei de ser feliz também, depois... Você, inevitavelmente, será grata aos seus amigos que lhe ensinaram o conceito de paisagem sonora. Quem tem um amigo tem tudo.
Ao descer da van, você não se poderá conter e dirá à trocadora: quero parabenizar vocês pela música ambiente. E ela lhe abrirá um largo sorriso.
Acontece que você quererá ir aos confins da sua cidade. Então, você esperará uma segunda van, que não virá. Virá um ônibus mesmo, da empresa monopolista da sua cidade, a mesma que financia todos os gigantes do poder. Mas você não pensará nisso naquele momento. Você entrará numa fila de uns trinta trabalhadores, que se aboletam diante da porta, esperando o motorista receber o dinheiro ou o cartão de cada um. Você fará um muxoxo e se posicionará contrariamente à sobrecarga de trabalho do motorista. Porque tudo nessa vida é passageiro, exceto o motorista e o trocador.
E você verá os trabalhadores segurando as sacolas uns dos outros e ajudando as mães com suas crianças. Você verá os mais jovens se afastando para que os idosos entrem primeiro. E uma lágrima poderá dependurar-se em seu cílio, se você for uma pessoa muito impressionável.
O ônibus que vai para os confins da sua cidade certamente será um pouco diferente da van estudantil. As pessoas estarão com pressa de chegar, pois ainda trabalharão. O motorista fará curvas aceleradas, capazes de derrubar uma criança do colo de sua mãe. Ele também freará vezes sem conta, e far-se-á um barulhão de ferros não-lubrificados. Você estará em pé e haverá muitos passageiros como você, balançando de um lado para outro. Mas uma senhora negra gentilmente se oferecerá para levar sua leve bolsa. Você sorrirá e dirá obrigada.
Haverá música ambiente também, mas será um sertanejo arretado. Comercialzão. Você começará a se irritar, mas não poderá se furtar à visão de uns passageiros dançando, outros cantando, alguns com fone de ouvido. Você não terá escolha senão lembrar sua prece diária em favor da diversidade. Seu espírito experimentará a calmaria e você olhará pela janela, percebendo, feliz, que a paisagem é de um contínuo verde, por quilômetros e quilômetros. E que umas gentis pessoas plantam jardins nas calçadas.
Na volta à sua casa, você já estará embebida da poesia da van. A sua alma se empoleirará na janela e seus cabelos balançarão ao vento. E você esquecerá de descer no seu ponto. Rindo de você mesma, você caminhará uns metros a mais até o próximo ponto e então descobrirá que as surpresas não acabaram. Um seu colega de classe média estará esperando a van. E você terá de reconhecer que ele, há muito tempo, trabalha pela melhoria do transporte coletivo da sua cidade.
Depois desse dia de paisagem, você não terá dúvida. O transporte coletivo da sua cidade vai melhorar.
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