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A tradição da compra de votos

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 30 de agosto de 2016 | 23:56


Há tempos, visitei uma comunidade negra, com a missão de estudar a fixação daquela população ao lugar. Encontrei dona Rita de Cássia, a quem pedi que contasse de sua vida. Minha vida tem nada demais não, minha fia... E riu uma risada compassada, estendida, alegre. Venha tomar um café.
Tomei café, conheci as ervas da horta, admirei o jardim e vi que dona Rita preferia falar de seu pai. Dei ouvidos e seus olhos brilhavam de lágrimas, quando dizia: meu pai sim, foi maravilhoso! Com sua folia de reis, arrecadou dinheiro para construir nossa igreja. Todos trabalhavam de segunda a sábado, e domingo era o mutirão da construção. A gente rezava e cantava o dia todo. As muié fazia comida. Cada comida gostosa, minha fia! Meu pai era do cu riscado. O que ele queria, acontecia.
E, sem perceber, dona Rita mergulhou na própria vida. Uma vez, minha fia, meu pai mandou reunir as família tudo aqui em casa. Nossa família era muito grande. Todo mundo aqui é parente. Encheu de gente no terreiro.
Meu pai pediu silêncio e disse: hoje o assunto é sério. Tá chegando a festa da padroeira e eu tô cansado de nunca ter uma menina aqui da nossa família como rainha da festa. Só menina branca é que é rainha. E a minha Ritinha tá bonita demais. Tá na hora das nêga ser rainha também. Afinal, a santa é nêga.
De agora em diante, é pra todo mundo acordar mais cedo e trabalhar até mais tarde. Final de semana, todo mundo vai pedir esmola pra comprar voto pra Ritinha.
Minha fia, os nêgo caíram na braquiária. Foi tanto voto, tanto voto, que a segunda colocada nem na festa foi. O momento mais bonito da minha vida. Entrei na igreja com um vestido todo bordado pela minha mãe e minhas tias. E pus coroa! Tinha medo até de me mexer. Os branco da igreja tava meio assustado. Era novidade uma preta rainha.
Essa história veio à tona de minhas recordações outro dia, na demora do ônibus. Chegou-se a mim uma senhora não tão alegre e saudável como a remota dona Rita, senhora de suas terras, matriarca em sua família. Trazia corpo inchado, olhos injetados, tremores nas mãos anunciavam um alcoolismo arraigado. Primeiramente denunciado pelo hálito.
Assentou-se a meu lado no banco, gentileza de um morador da rua. Bom dia, minha fia. E se riu. E me passou um santinho de candidato a vereador em cidade onde não voto. Eu tô contente, minha fia. Depois de anos, me deram um emprego. Eu trabalho duas horas por dia. Vou durante uma hora, volto na outra hora, colocando santinhos nas caixas de correio, entregando nas mãos das pessoas. Assim arrumo um dinheirinho pra comprar presente pros meus netos.
Minha família toda vai votar nesse moço aí. Eu não conheço ele não. Meu filho é que arrumou esse servicinho pra mim. É bom que eu aguento. E esse moço prometeu um emprego pro meu filho. Você sabe, minha fia. Hoje em dia tá difícil trabaio pros véio e pros novo.
Eu enrolava o santinho nos dedos, meio muda, vendo que não tinha lixeira nas redondezas.
Essa nova dona Rita se levantou. Preciso ir, minha fia. Já andei uma hora, preciso voltar. É bom que é um servicinho que eu aguento, né? Deus te abençoe, minha fia. Vote no candidato certo.
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