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Da aposentadoria das professoras

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 27 de agosto de 2016 | 10:53


É arriscoso, moça. Falar de um assunto desses. Nomeio-a moça, visto serem moças quase todas as pessoas ocupadas na educação como profissão. Porém, moços, sintam-se bem-vindos e venham mais. Se lhes for dada a coragem. A diferença engrandece.
Sei que isso aqui é um atrevimento. Mas é que me provocou um moço brasileiro aí, especialista em previdência. E falou por muitos outros especialistas. Disse que a aposentadoria das professoras, e dos professores, cinco anos antes do que se aposentam os demais trabalhadores, quebra a previdência, pesa para o país.
É quase fato dado que sua opinião vai ganhar muitos e fortes adeptos. Eu acho. Mas não é do meu feitio deixar pra lá só por isso.
Assim, se você é uma moça ou moço de coragem, por atuar em educação, saiba que será necessária muita coragem para ler aqui. Já que é altamente provável que eu não acerte o ângulo de abordagem. Ou ignore alguma importante faceta. Considerando que se trata de um tema, para mim, só inteligível pela emoção.
Pensei em começar pelo fim. Que assim, se você não tiver coragem, já pode abandonar o projeto de ler. Creio que o Brasil poderá dispensar esse desconto de cinco anos na aposentadoria das professoras.
Tive o cuidado de dar uma olhadinha no discurso hermético de alguns juristas e descobri que essa aposentadoria do magistério da educação básica não é, na lei, especial no sentido que se dá normalmente à palavra. Porque não foi considerada, no ato legislador, uma profissão penosa. Foi considerada uma atividade de grande relevância social. Daí a benesse... Desculpe-me esta última palavra.
Bom. Aconselho que se me dê desconto pelo corporativismo, mas acho a relevância social da profissão indiscutível. E variável. Nas redes públicas, por exemplo, é relevante porque cuida do mais expressivo contingente de jovens da nação. Olha-os. Enquanto os familiares trabalham, e muito. Bem mais que as professoras.
Instrui também. Porém menos. Cada vez menos. Embora a muito mais pessoas.  Sendo preciso acentuar esse feito nacional.
E aí pode ser útil uma incursão no espaço-tempo.
A profissão é historicamente mal-remunerada na terra brasilis. Isso porque, de uma onda, se quis dar escola para todos. Já desde o século retrasado. Mas ao preço de feminizar o magistério para pagar menos. Sob a alegação de que mulher é talhada para educar. Pela própria Natureza. Bulhufas...
Ao preço de dispensar a qualidade de vida, a quantidade de formação e recursos de que precisa dispor uma professora para cuidar, instruir, educar.
Quanto a isso, não vou me estender aos recursos materiais, pois eles são sempre primeiro abordados. Vou defender que, para representar uma ou várias culturas, como é o seu caso, diante das jovens gerações, uma professora precisa transitar nessas culturas. Para ser simples, ela precisa transitar do popular ao erudito. E com a emergência das culturas juvenis, ela não pode se ater às culturas oficiais e adultas. Às vezes precisa mesmo combatê-las.
Mas carreiras mal-remuneradas e carentes de condições de trabalho não atraem esse tipo de professora, que eu gostaria de nomear gente de sensibilidade e pensamento. Atrai muito mais pessoas que estão obrigadas à lida diária da sobrevivência, do pão. Que na própria juventude não puderam desfrutar de um ambiente onde a cultura fosse constantemente objeto de atenção. E que no exercício profissional, não sem razão, precisam se ocupar principalmente de obter alguma segurança material. E mais, como determina o nosso tempo, precisa consumir muito, divertir-se, viajar às pressas, alimentar-se ao modo gourmet, ter carro. Nada que eu considere ilegítimo. Só acelera a roda-viva do círculo vicioso. E carrega o destino pra lá.
E mesmo quem precisa primeira e estritamente obter o pão está preterindo a carreira. Falta mais de uma centena-de-milhar de professores nas redes públicas de educação no Brasil. Dizem que são necessárias duas décadas para reverter esse quadro.
Nas escolas, geralmente de formato retângulo, subdividido em quadrados, depara-se com muitas culturas. Algumas das quais sequer têm um ponto de interseção com a cultura tida como para ser veiculada em currículos escolares. Então as professoras julgam, e não as critico, que as jovens gerações têm dificuldade para aprender. E todos os dias se debatem, tentando encaixar a tomada no focinho de porco. Até desistir, o que é rápido.
É que na escola já encontram prontas as expressões que ajudam a desistir sem culpa, visto que ninguém merece viver culpado. Expressões como desinteresse, família desestruturada, problemas sociais; sempre atribuídas às jovens gerações. Quando se aplicam também às próprias professoras, que vêm desse mesmo lugar, mas estão se afastando para casas próprias, fruição da natureza, happy hours, fugas de temporada. Nada ilegítimo, repito.
Sinto a velocidade do círculo vicioso. Cento e vinte. Cento e trinta. Cento e sessenta. Mas é inútil dormir. A dor não passa.
As jovens gerações se rebelam. Sentem-se sujeitos. Não querem ser sujeitas.
Elas se rebelam contra as horas diárias de cópias, que não são mais chamadas de cópias porque os pesquisadores da educação condenam o uso indiscriminado dessa prática. Mobilizam pouca criação, dizem eles; ou, para adotar um termo-padrão, aprendizagem.
Uma boa imagem para ilustrar a situação é o toque da sirene do recreio. Pense a professora-leitora numa boiada de Guimarães Rosa, aquela que tem alma, se atropelando na porta da sala de aula, para finalmente tomar quinze minutos de ar. Para conversar, jogar, brincar e aprender pacas. Como já nos avisaram alguns pesquisadores da educação. 
E até para brigar horrorosamente, com sangue, suor e lágrimas, pois é difícil conviver numa cela, com outras vinte e poucas crianças e jovens, duzentos dias a cada ano. Até as professoras sentem constantemente vontade de dar uns sopapos.
De forma que eu desejo espicaçar os senhores juristas e legisladores, e lhes dizer que, por enquanto, ao invés de tirar das professoras o prêmio de consolação de cinco anos a menos, o Brasil deveria declarar penosa a sua profissão. 
Não é exposta ao sol, a profissão. Não é braçal, fisicamente pesada, perigosa por natureza, nada disso. É penosa porque implica lembrar todo dia, ao som do despertador, que sua missão é impossível. E que ela deve alegrar-se com a cerveja de sexta à tarde. Adotar o comportamento geral, segundo descrito com maestria por Luiz Gonzaga Junior.
Realizar, durante muitas horas seguidas, e não conseguir vislumbrar o efeito do trabalho, como consegue em apenas um dia um bom jardineiro. Isso acumula um mal-estar constante. Adoece. Faz correr para a porta da sala de aula ao som da sirene. E parece que chegam os setenta anos, mas não chegam os cinquenta-e-cinco.
Então, nesse momento, o melhor é riscar a ambiguidade da lei e declarar: é penosa a profissão de professora. Para melhor tratar outras faces desta que é uma atividade fundamental à sobrevivência da espécie, a educação.
Então, seria bom revisitar os pesquisadores, os pensadores, e eu os cito porque os conheço mais do que às pesquisadoras e pensadoras. Seria bom ver especialmente suas reflexões sobre o recrutamento das professoras, em estratos sociais desfavorecidos; sobre a sua formação profissional propriamente dita, tão centrada em culturas oficiais sobre o que ensinar e sobre como ensinar; sobre a sua formação continuada, que deve ser intensa toda a vida, dada a obviedade de que a cultura é dinâmica. 
Deveriam ser transformadas as suas condições de trabalho, os lugares secos em que cumprem suas jornadas; sem cores, sem formas, sem jardins, sem jardineiros, sem tecnologias, sem oficinas, sem a rua, a cidade para ir. Combatida a burocracia infernal que lhes dá sensação de competência, por entregar pontualmente tantos formulários, assim produzindo dados que acalmem a sociedade sobre o escandaloso fracasso de suas utopias em educação.
Seria bom rever o regime industrial em que funcionam as escolas, que adoece também as crianças. Seria melhor ainda olhar de perto o ritualismo, a repetição, a domesticação. Que vez por outra explode num sonoro palavrão, numa bala, num corpo estendido no chão. Em humilhações terríveis às professoras, inclusive na sua feminilidade.
É como eu disse antes. Visitem as pessoas de pensamento sobre educação. Não posso aqui representá-las. 
Mas podem partir de Darcy Ribeiro, com quem tenho meus dissensos, em sua máxima: a crise da educação é um projeto.
Há muita gente do poder, e de seu novo nome, gestão, que representa o interesse de que a crise da educação não seja algo insuperável, mas uma intenção. Para que não se alterem muito os regimes e protocolos de poder.
Instaurando-se para a educação um projeto que não seja a crise, mas a relevância social, as professoras saberão mais com a experiência. Aos cinquenta e cinco anos, estarão no auge do seu trânsito em culturas e acumularão saberes indizíveis sobre como cuidar, instruir. levar a juventude para passear no saber, no sentir, no emocionar-se. No tolerar, no compreender. No esperar, no lutar. No ouvir, no questionar.
Eu tive o privilégio de conhecer uma professora de setenta e quatro anos, que não queria se aposentar. Era um sucesso. Brava, picuinha, mas amada porque sabia o que ensinar e como ensinar. Ela não pode ser tomada como argumento para dizer que basta a professora querer, que a crise da educação não se realizará, como projeto que é. Ela deve ser tomada como exemplo de que professoras, em boas condições de vida, de formação, de condições de trabalho, podem se aposentar na mesma idade que as demais trabalhadoras, e trabalhadores. Porque, sim, viverão mais, não poderão ser tuteladas pela previdência. Não quebrarão o país. Ele será gigante a erguer-se de esplêndido berço.
Mulher gosta de arremate. Fim de bordado, de crochê, de renda deve ser bem amarrado. As aposentadorias de políticos e demais altos funcionários devem ser revistas. Não sabemos se elas têm potencial para quebrar a previdência. Não sei se o respeitável senhor especialista o diria. Mas elas são obstáculos morais à construção desse país.

Fonte da imagem: https://umhistoriador.wordpress.com/2014/01/31/a-crise-na-educacao-publica-um-projeto/

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