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Morte e vida da cultura manuscrita

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 3 de setembro de 2016 | 06:29



Eu sou aquela amante à moda antiga. Do tipo que adora caneta, caderno de notas, objeto-livro. Que gosta de sentir a tinta riscando o papel, de borrar, de fazer flechinhas indicativas da mudança de rumo. Que adora ler livro já lido e anotado das emoções do anterior leitor. Mas eu bem sei. Agora sou de um grupo cultural residual.
Hegemônica agora é a gente de cultura digital. Ela chega primeiro à gente pequenina e a encanta. Com razão. É muita coisa gostosa no mesmo iphone.
E tendo a pessoa pequenina participado do reinado das janelas individuais e múltiplas para o mundo, é difícil focar a atenção numa única pessoa que discursa. Ou num exercício em papel, que pergunta sem ser interativo. Ou auto-instrutivo.
Como eu sou analógica ao estilo dos antigos orelhões, essa ficha me caiu recentemente, quando escutava falar o historiador Robert Darnton. Homem que pesquisa leitura num dos corações planetários da cultura digital. E ele disse. Algumas unidades federadas dos Estados Unidos não ensinam mais escrever à mão.
Quase caí da cadeira. E Darnton foi explicando, com paciência, que não é o nosso fim. Ainda por muito tempo haverá papelarias, ainda mais quando há papel reciclado e caderno costurado à mão. Mas assim como alguma coisa se alterou profundamente em nosso modo de ver o mundo quando houve a imprensa. Ou quando houve o grande advento da máquina. Alguma coisa mudou radicalmente quando uma pessoa pode levar duzentos livros dentro do ônibus. 
E todo tipo de atividade cultural, desde conversar com a família em viva voz a jogar, passando, obviamente, pelo paquerar. Agora em aplicativos. Mas a pessoa de cultura digital sabe perfeitamente lidar com isso. E mesmo na praça, paquera via dispositivo. É como sempre foi. Raramente dá certo. Mas, às vezes, dá.
Daí, sabe quando a ligação no orelhão ia se estendendo, e caíam várias fichas? Pois então. Assim se deu comigo.
Dentre outras coisas, pensei em instituições educacionais, sobre as quais tenho muita ocasião de pensar. Por que é que dou tanta transcrição à mão para meus estudantes fazerem. Por que é que ensino letra cursiva, olho caderno, preencho uma lousa quase toda aula.
Passei a ver com outros olhos menino de letra feia. De cara, já lembrei de uma galera da letra ininteligível, mas dona de umas palavras maravilhosas. Talvez num teclado... Sei lá. Tem que ver como fazem as unidades federadas...
Ocorreu-me a improvável hipótese de que uma pá de meninos esteja resistindo à escrita manuscrita cotidiana nas escolas por razões culturais. Por ser bidimensional demais pra eles. Não raro, são de finíssimo trato; sangue bom toda vida. Sem uma linha no caderno. E seguem aprendendo continuamente pois, estando lá, vivos, dão prova cabal de todo dia saber.
Não que o Brasil não esteja fazendo das tripas coração para que a cultura digital interpenetre as instituições educacionais. Muita máquina foi comprada, embora umas em licitações viciadas. Muito curso foi dado. Há muito apelo aos mestres para que adentrem esse território estrangeiro. 
Em muitas, a cultura digital já vem assumindo a ponta. Mas alguma coisa condena a maioria das instituições educacionais para o povo irremediavelmente à lousa e ao caderno. O que será.
Tem talvez algo que seja dessas próprias instituições, de sua constituição. Também de boa parte da geração atual de mestres, que, como eu, tem um pé no impresso ou no manuscrito, outro na tela. Meus estudantes racharam de rir, umas duas aulas seguidas, porque eu não sei falar uma expressão popular de uma rede social. Dessas com jogo-da-velha.
E já que tem a teoria da conspiração, por que não pensar que existe uma intenção oculta, humana ou inumana, de que as instituições educacionais para o povo sejam escassamente digitais.
Parece serem como eu essas instituições. Têm a cultura digital como concorrente. Uma herege. Colonizadora. Nós a proibimos. Sendo proibido proibir.
Confesso não ser uma entusiasta panfletária da cultura digital. Ela também pode reduzir milhões à servidão. Tal como nos facilitar de novo modo a crença de que podemos inscrever algo na existência. Ser poeira de estrelas com a sensação de ser alma. Mas olha. Quem pode definir o que fará da tela pessoal cada uma dessas auto-intituladas almas.
Talvez seja pra sempre assim. Uns servem. Uns são servidos. Mas o pra sempre sempre acaba.
Eu agora sou resíduo. Eu penso o mundo como livro. Embora alguma coisa aconteça em meu coração quando o tempo-mundo me carrega às telas. Onde não mais sei contar as laudas. Ou citar a página.

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