Home » » Dinamene (Maicon Tenfen) - Resenha

Dinamene (Maicon Tenfen) - Resenha

Written By Ana Claudia Gomes on segunda-feira, 18 de agosto de 2025 | 14:09

 

 


Dinamene é uma obra que inicia o leitor aos estudos sobre Luís Vaz de Camões. Transcrevo um soneto do autor que tem grande penetração na cultura brasileira, graças a ter sido musicado algumas vezes e fazer referência à Bíblia.

 

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer

 

É um não querer mais que bem querer;

É um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é cuidar que se ganha em se perder.

 

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?



1. Luís Vaz de Camões - vida e obra


Luís Vaz de Camões nasceu no começo do século 16, em Portugal, de família da baixa nobreza, com títulos mas dependente dos senhores mais abastados. Sua convivência junto a esses círculos da nobreza oportunizou que tivesse contato com as culturas eruditas, inclusive as culturas clássicas, greco-latinas. Teve uma juventude boêmia, inclusive amores proibidos e talvez por um certo desregramento de conduta, foi exilado no Oriente, cujas costas estavam colonizadas por Portugal, que mantinha feitorias em todo o litoral.

A conquista dos Oceanos por Portugal era recente e Camões participou de navegações e batalhas no próprio século da expansão marítima, especialmente nas décadas de 1540 e 1550, ali exercendo cargo público por 17 anos.

Essa experiência no mar e nas colônias e o contato com poemas épicos da Antiguidade, como a Ilíada, a Odisseia e a Eneida, lhe inspiraram a ideia de escrever um poema épico sobre Portugal. Camões vivia no período artístico chamado Renascimento, cuja valorização do homem ou humanismo era latente, como no período clássico. Sua obra-prima, Os Lusíadas, se inscreve nessa tradição.

O poema Os Lusíadas demorou anos para ser composto. Conforme as tradições poéticas antigas e renascentistas, regras bastante rígidas envolviam a composição dos poemas, por exemplo na métrica e nas rimas. A métrica consiste em definir o número (fixo) de sílabas que compõe cada verso. A rima é a sonoridade semelhante ao final de cada verso. Isso tem a ver com o fato de que os poemas eram recitados, contribuindo a rima e a métrica para a memorização.

Camões escreveu os Lusíadas dividindo-o em dez cantos, totalizando centenas de estrofes. A métrica era a dos versos decassílabos (compostos de dez sílabas contadas até a última sílaba tônica de cada verso). Cada estrofe é composta de oito versos rimados entre si. Com isso é possível imaginar o trabalho hercúleo de acomodar uma narrativa em regras tão circunscritas. Além disso, o conteúdo do poema exigiu grande conhecimento das letras clássicas, da tradição sobre as navegações e outros fenômenos da história portuguesa. Um dos mais famosos é a história do rei D. Pedro e sua amada Inês de Castro. D. Pedro era casado e se apaixonou por Inês de Castro, tendo ela com ele alguns filhos. Por esta razão foi exilada até que D. Pedro ficou viúvo e a fez retornar. A morte de Inês causou grande comoção nos patrícios, que simpatizavam com a consorte do rei. A famosa frase de Camões: "Agora é tarde, Inês é morta" virou provérbio em nossa cultura.

Camões fez um trabalho de estabilização do idioma português (ortografia, léxico, gramática) que repercutiu pelos séculos seguintes.

Ao finalizar o poema, Camões retornou a Portugal com a intenção de publicá-lo. Precisou passar pela censura da Inquisição pois, ao retornar à pátria, esta estava imersa no conservadorismo da Contrarreforma (movimento da Igreja Católica que buscava estancar a expansão das igrejas protestantes em todo o mundo cristão). A Inquisição avaliou cuidadosamente a obra, pois Os Lusíadas citava deuses greco-romanos e outras personagens mitológicas consideradas heréticas. Mas o censor considerou que não havia intenção idólatra na obra, o uso dessa mitologia tinha fins literários e de composição: intertextualidade com as epopeias antigas.

Na obra, Camões homenageou o rei D. Sebastião, jovem monarca que pouco depois desapareceria numa batalha contra os islâmicos do norte da África. D. Sebastião seria cultuado como um semideus pelos portugueses, no que se chamou Sebastianismo, cujo corolário era a crença de que o rei retornaria.

D. Sebastião destinou uma pequena pensão para Camões por sua obra. O poeta estava extremamente pobre e mesmo assim tinha um escravo javanês que esmolava para ele. Foi esse escravo que inspirou o personagem Jaú da obra aqui em tela.

Essa também era a época da peste bubônica na Europa, que vitimou extenso percentual da população. Camões morreu nesse contexto, tão pobre que foi enterrado na vala comum de uma igreja, como indigente. Sua memória e sua obra tiveram pouco impacto nos séculos seguintes, até chegar ao 19.

O século 19 foi o tempo de surgimento de novos sentimentos e fenômenos na cultura ocidental, como o romantismo e o nacionalismo. Portugal estava decadente enquanto outras nações europeias encontravam seu ápice. O poeta Almeida Garret escreveu um livro chamado "Camões", que tanto abriu o romantismo luso quando iniciou o resgate do poeta para o povo português. A obra Os Lusíadas e seu autor foram louvados como símbolo da pregressa glória portuguesa. Apareceram biógrafos que tentaram escarafunchar a vida do poeta, que poucos documentos deixou. Mitos foram tecidos em torno da vida de Camões, inclusive sua comparação a heróis antigos, que eram poetas guerreiros. Camões seria a manifestação desse arquétipo na nação portuguesa.

Desde então, Camões é considerado o fundador da Língua Portuguesa como a conhecemos e como o maior poeta português de todos os tempos, homenageado por seus pares. E Portugal se tornou a gloriosa pioneira da conquista do Oceano, sendo esta a glória de que poderia se ufanar a nação.

O grande Fernando Pessoa também homenageou Camões com o livro "Mensagem", considerado uma de suas obras-primas. Dele destacamos o popular poema Mar Português:


Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram,

Quantas noivas ficaram sem casar.

Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor

Deus ao mar o perigo e o abismo deu

Mas nele é que espelhou o céu.


2. Dinamene, a personagem

Camões escreveu muitos poemas além de Os Lusíadas. Sua coleção é primorosa, com métricas diversas, inclusive magníficos sonetos. Nesta coleção destaca-se a lírica do amor, em que o poeta cantou seus múltiplos amores, alguns proibidos e decalcou sua concepção da mulher. Nesses poemas identificam-se se vários ciclos, correspondentes a cada amor, inclusive o ciclo de Dinamene. Em geral neles há a alusão ao Oceano como tendo tragado a musa em um naufrágio.

Não há certeza sobre quem seria sido Dinamene. Era comum aos poetas da época preservarem as identidades de suas musas.

No século 19, quando a nação portuguesa vasculhou a biografia de Camões, firmou-se a tradição de que Dinamene teria sido uma chinesa que Camões amou e que, com ele, teria sido vítima de um naufrágio no Rio Mekong, no Camboja. Nesse naufrágio, Camões teria optado por salvar seu manuscrito das águas, perdendo assim a possibilidade de salvar a amada. Essa hipótese foi derivada de um pequeno trecho de Os Lusíadas, no qual o poeta faz referência ao salvamento dos cantos de um naufrágio no Rio Mekong (mas não faz referência a Dinamene neste trecho).

"Vês, passa por Camboja Mecom rio,

Que 'capitão das águas' se interpreta: [...]

Este receberá plácido e brando,

No seu regaço o Canto que molhado

Vem do naufrágio triste e miserando"

(Canto X, 127-128).

 

Dinamene é o nome de uma das cem ninfas marinhas, filhas de Nereu e Dóris, da mitologia clássica - as nereidas. Seria a tradução de Camões para o nome chinês Tin Na Men, ou portal do sul.

Há críticos dessa hipótese entre os biógrafos de Camões. Eles argumentam que não se pode derivar de um único trecho da obra um dado biográfico dessa magnitude, sem outros documentos que o comprovem. O eu-lírico não necessariamente coincide com o eu do poeta. Um dos argumentos é como teria Camões salvado o manuscrito das águas, se não havia material que pudesse impermeabilizá-lo, como o plástico.

O ensaísta Ernani Cidade levanta a hipótese de que Dinamene tenha sido uma mulher portuguesa, Dona Joana Noronha de Andrade Menezes, fidalga cujas iniciais formam o nome Dinamene. Camões amaria esta mulher, que a ele foi recusada devido à sua parca condição financeira. Ela teria sido dada em casamento a um nobre mais abastado que servia no oriente, tendo morrido num naufrágio quando seguia para casar.

Destaco dois poemas do ciclo de Dinamene do cancioneiro de Camões:

 

Alma minha gentil, que te partiste

tão cedo desta vida descontente.

Repousa lá no Céu eternamente

e viva eu cá na terra sempre triste.


Se lá no assento etéreo, onde subiste,

memória desta vida se consente,

não te esqueças daquele amor ardente

que já nos olhos meus tão puro viste.


E se vires que pode merecer-te

alguma cousa a dor que me ficou

da mágoa, sem remédio, de perder-te,


roga a Deus, que teus anos encurtou

que tão cedo de cá me leve a ver-te,

quão cedo de meus olhos te levou.

                          ...


Quando de minhas mágoas a comprida

Maginação os olhos me adormece

Em sonhos aquela alma me aparece

Que para mim foi sonho nesta vida.


Lá numa saudade, onde estendida

A vista pelo campo desfalece

Corro para ela; e ela então parece

Que mais de mim se alonga, compelida.


Brado: - Não me fujais, sombra benina!

Ela, os olhos em mim c'um brando pejo,

Como quem diz que já não pode ser,


Torna a fugir-me; e eu gritando: - Dina...

Antes que diga: - mene, acordo e vejo

Que nem um breve engano posso ter.


3. Dinamene, o livro


Maicon Tenfen é um escritor catarinense de nascido em 1975, que já escreveu mais de 20 livros. Mestre e doutor em literatura, também atua como professor universitário.

Sua obra Dinamene é um romance histórico de aventura, que assume a tradição da personagem Dinamene como tendo sido a chinesa amada por Camões. E faz um interessante mote para sua obra: o que teria acontecido se, ao invés de salvar do naufrágio o manuscrito de Os Lusíadas, o poeta tivesse optado por salvar a vida de sua amada? Dessa forma, o leitor pode ter acesso a diversos fatos e fenômenos da vida de Camões (muitos comprovados por documentos, como seu serviço como Provedor dos Defuntos e Ausentes nas colônias orientais, como ter tido um escravo javanês, como a corrupção entre os colonizadores e colonizados no oriente). E também constrói uma personagem Dinamene que poderia ter existido no século 16, mais precisamente nas fímbrias de uma cultura marcial, o Kung Fu.

O livro, publicado em 2020, foi selecionado pelo Governo Federal para fazer parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) Literário, em 2021. É bem provável que o autor, ao escrever o livro, tivesse mesmo como público prioritário a juventude que frequenta o Ensino Médio. A literatura portuguesa, Luís Vaz de Camões e Os Lusíadas fazem parte do currículo desse nível de ensino, porém ler o próprio clássico é difícil para estudantes jovens ou mesmo para qualquer leitor iniciante ou intermediário. Assim a obra Dinamene seria uma forma de dar acesso a conhecimentos sobre a vida e a obra de Camões, incluindo trechos de Os Lusíadas transcritos em prosa.

O autor também fez esse experimento em sua obra Quissama: o império capoeira, que aborda a experiência histórica afrodescendente, e que concorreu ao Prêmio Jabuti. Assim como Dinamene foi premiada em 2022 com o Prêmio Lirerário Unicred.

A obra é muito bem escrita, fluida, e permite uma leitura rápida de imersão e distração, como parece pretender o gênero de aventura. Não se detém em descrições, divagações ou análises, dando ênfase ao componente "ação" do enredo, repleto de reviravoltas surpreendentes.

O autor começa a obra usando a técnica "in media res" (do latim, no meio das coisas): primeiro narra o naufrágio e o salvamento de Dinamene, assim como a perda do manuscrito, para depois contar o início, o desenvolvimento e desfecho da história de amor entre os presumidos Camões e Dinamene.

Levando em consideração uma expectativa do público e das políticas públicas contemporâneas, Dinamene é um exemplo de protagonismo feminino. O autor intercala capítulos que narram as perspectivas ora de Camões, ora de Dinamene, que são as únicas personagens com relativa profundidade psicológica na obra.

Dinamene é inserida na cultura marcial do Kung Fu, dessa forma fazendo contato com o público brasileiro, no qual há muitos admiradores dessa prática. Ela é uma mulher de corpo aparentemente frágil e delicado, porém treinada, destemida e dotada de projetos de vida. É pena que na obra a China seja retratada de maneira um tanto estereotipada, como um lugar caótico e minado pelas rivalidades entre facções. No ocidente sabemos muito pouco sobre as culturas orientais e essa seria uma oportunidade.

Camões é delineado como um enamorado leal e dedicado, de forma que Dinamene é, na realidade, quase uma protagonista mais importante que o poeta.

Devido a filiar-se ao gênero aventura e também a características didáticas, Dinamene não é um romance histórico denso, como acontece quando o objetivo é fortemente a experiência histórica em si mesma. O autor permite-se inclusive inserir eventos que beiram a fantasia e poderiam ser transpostos para o cinema como em muitos filmes que abordam as culturas marciais. Como a cena final, em que Dinamene cai no abismo, sendo levada pelas correntes caudalosas de um rio e suas cascatas, saindo viva mesmo sem saber nadar.

Dinamene ainda traz, esparsas ao longo da obra, máximas cuja forma de expressão remetem à sabedoria chinesa, como: "Já que a vida é ilusória como um sonho, por que nos atormentamos?"; "A paciência é uma árvore de raízes amargas e frutos doces"; "É impossível polir uma pedra sem atrito; ninguém se torna brilhante sem provações"; "Faça como as rochas. Espere o ataque das ondas, resista e veja como a espuma morre aos seus pés".


Referências

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Abril, 1979.

CAMÕES, Luís de. Para tão longo amor tão curta a vida. Sonetos e outras rimas. São Paulo: FTD, 2013.

PEREIRA, Vicente Luís de Castro. As muitas vidas de Luís de Camões: ressonâncias biográficas camonianas na literatura luso-brasileira oitocentista (tese). São Paulo: USP, 2015. 

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2002.

ROSA, Dafne di Sevo. Literatura e história do Brasil em conversa com Maicon Tenfen. Antares. Letras e humanidades. v. 13. n. 31, set./dez. 2021.

TUFANO, Douglas. Camões. Lírica-Épica. São Paulo: Moderna, 2015.



SHARE

0 comentários :

Postar um comentário