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Conversa do ônibus

Written By Ana Claudia Gomes on terça-feira, 22 de novembro de 2016 | 07:34

Dora era professora e poetisa. Viajava diariamente setenta quilômetros para trabalhar. Ir e voltar. Fazia de tudo no ônibus, mas principalmente esculpir ideias para poesias. Por isso era sentar na poltrona e fechar os olhos torcendo o vizinho de banco não ser muito sociável. O que era raro mesmo às quatro da manhã.
Um dia, mas já era a viagem de volta. Então cansaço e suor. Conheceu um motorista aposentado, seu Nelson, que lhe contou uma história excepcional sobre estudantes em ônibus. Ele era desses companheiros de poltrona que não deixam a vizinha dormir. Desses que batem no braço para começar e para continuar a conversa. Toda hora puxava assunto. E a viagem foi longa viu. Pelo menos me rendeu uma história de segunda mão.
Dora disse que parou de se lamentar depois de uns minutos. Preferiu lembrar seus próprios alunos e se divertir com seu Nelson.
Soube que seu Nelson trabalhou para uma empreiteira no norte do Brasil e foi encarregado de fazer o transporte de estudantes de um acampamento no canteiro de obras para a cidade mais próxima. A viagem durava uma hora para ir, outra para voltar.
Minha filha, eu nunca vi uma turma daquelas. Tinha lá um negão que dava quase a altura do ônibus. Era a gente sair ao final de cada tarde, rumo à cidade, que ele se levantava e comandava uma cantoria coincidente com a duração do percurso. Uma hora inteirinha de fanfarra no meu tímpano.
Eu ficava desesperado, contou seu Nelson. Todo dia tinha fortes dores de cabeça. Conversava com meus superiores e eles não sabiam como proibir tanta zoada. Diziam que eu fingisse nada estar acontecendo.
Eu sou evangélico, sabe minha filha. E no ônibus tinha também uns alunos evangélicos e eles ficavam quietos, cabisbaixos. Às vezes pareciam irritados. Lembro de um mais gordinho que ficava murmurando, reclamava todo dia, mas não tinha coragem de encarar o negão. E tinha uma outra que uns dias parecia estar num mau-humor danado. Mas outros dias ficava rindo da palhaçada musical.
Bom que na volta da escola, tarde da noite, eles vinham mais calmos. Era só na viagem de ida mesmo que o bicho pegava.
Dora quis saber se seu Nelson se lembrava das músicas cantadas no ônibus. Ele informou surpreso só lembrar das mais irritantes. As mais indecentes, segundo sua expressão. E foi assim meio teatral, meio onomatopaico.
Disse ele. O negão batia o ritmo nas poltronas do ônibus ou no teto e cantava uma coisa assim: tutucajacacaiabil. E os estudantes respondiam muito alto: dá-dá-dá. E o negão cantava: E ti-ti-ti no tó-tó-tó. E a resposta: dá-dá-dá. E vinha mais: e se eu pedir você me dá. Dá-dá-dá.
Isso podia durar a viagem toda, filha. E tinha o olhar grave e terno seu Nelson. Eu não lembro mais dos versos. E o pior é que o filho da mãe era muito afinado.
Tinha uma outra também que era sucesso na época. Dizia assim: eu fui dar, mamãe; fui dar, mamãe; fui dar um serão extra; trabalhei com o patrão. O negão fazia uma voz fininha, imitando a cantora mesmo da música sabe.
Você veja, minha filha, o que um velho como eu já foi capaz de aguentar. Eu precisava do emprego, tinha família no interior.
Mas depois que tudo passou eu sou sincero com você. Acho é muita graça. Acho que os meninos têm mesmo é que aproveitar a vida. Se não, depois chega na minha idade... Ser velho presta não.
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