Temporada de padrastos

Written By Ana Claudia Gomes on sábado, 19 de novembro de 2016 | 03:22


Quando eu era pequenina, minha mãe me contava histórias da carochinha. Não sei se as mães de agora ainda contam. Pois as pessoas pequeninas não têm dado muitas mostras de acreditar em carochinhas. Pelos menos não a mim.
As histórias da minha mãe eram povoadas de madrastas malvadas que combatiam as meninas órfãs. Pode ser que naquele tempo, o da carochinha, muitas mães morressem jovens, dos esforços da reprodução, das doenças sem medicina.
Agora tenho mesmo é ouvido muitas histórias verídicas. Não chame minha família, professora. Senão meu padrasto me arrebenta.
Uma linda moça negra está a conversar com uma linda moça loira, enquanto colorem seus mapas e diz. É tão chato morar com padrasto né. Ao que responde a outra que sim, que eles xingam a gente demais. Por isso vieram as duas do interior para morar com as respectivas avós.
O rapaz assistiu ao extermínio do pai. Sofreu maus-tratos do padrasto na primeira infância. O avô ganhou na justiça o pátrio-poder e a guarda. Até enquanto eu o via, estava sem sonhos. A vida lhe parecia uma sucessão de sem-gracezas.
Aprendi a ter certos cuidados. Com quem você mora, pergunto. Ou, qual é o nome de sua mãe e de seu pai. Ao que alguns respondem. Moro com minha avó. Moro com minha mãe. Meu pai morreu.
Como seu pai morreu? Às vezes pergunto. E vejo o olhar se desviar para um ponto vazio, brilhando em lágrimas. Enquanto a boca diz não sei. Posso estar imaginando coisas, mas não sei parece querer dizer não quero que meus ouvidos ouçam.
Já teve vez também que ouvi não sei acompanhado de minha mãe não quis me contar. Ou então. Foi de tiro. Mas não me deixaram ver, professora.
Às vezes pergunto se gostam de ir à escola. Gosto não, professora. Mas se eu não vier meu padrasto me coloca pra limpar a casa.
Um dia encontrei um pequeno com um celular mais velhinho, tela toda rachada. Que legal, comemorei com ele. Você agora tem um celular. Abriu sorrisão. É, ganhei do meu padrasto. Ele me pediu pra sumir com as cachorrinhas lá de casa e então me deu o celular.
Isso já não é de hoje. Muito tempo atrás, eu e meus colegas educadores cortávamos um dobrado com uma menina irascível. Até nossa pedagoga descobrir que a menina vivia num único cômodo com mãe e padrasto, onde ambas, mãe e filha, eram toda noite seviciadas. Passamos a suportar toda má-criação da menina. E a tentar tratá-la como gente, ao menos na escola.
Um belo rapaz, já em seus músculos de academia, chorou. Eu não fico em casa, professora. Não suporto meu padrasto. Pego minha bike e vou para a casa da minha tia, onde parece que ainda encontro meu pai.
Eu não acredito mais em carochinhas e nem na generalização da maldade das madrastas. Decorrente, também não posso achar que todos os padrastos são maus. O que eu escuto é o eco inconfundível da voz de Renato Russo denunciando que há tempos são os jovens que adoecem. 
Faz tão pouco tempo, Renato. Agora, parece que os jovens já não adoecem mais. Eles simplesmente morrem. E tendo as jovens mães direito de amar, agora vivemos uma temporada de padrastos.
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