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A aviãozinha

Written By Ana Claudia Gomes on quarta-feira, 14 de setembro de 2016 | 15:05

Celeste foi minha colega no segundo grau. Na verdade, a colega que mais prezei no primeiro ano secundário. O suficiente para descobrir pequena parte de sua maravilhosa alma. E desconfiar incrédula de que ela não sabia ler.
Demorava um tempão fazendo as margens do caderno, copiando os enunciados com canetas de cores coloridas, e me pedia. Posso copiar de você? Não consigo escrever rápido. Não sei. Meus olhos deviam ficar tristes nessas horas. Mas eu deixava copiar.
Passava cola. Eu. Que não dormia enquanto tivesse um dever de casa por fazer. Fazia os trabalhos. Celeste passava a limpo e embelezava o papel almaço. Mas muito mesmo. De forma que, se algum professor achasse defeito, a gente faltava morrer.
Fazíamos parte da tropa de elite da classe. Mas Celeste não fazia leitura oral. Por nota nenhuma. E muito menos falava em apresentação de trabalho. Os professores compreendiam. Celeste era muito tímida. Na sala. No resto do mundo, ela era o cão chupando manga. Apresentava todas as atividades escolares, ainda que com um dia de atraso. O que era quase toda vez. Faltava em dia de prova. E depois de saber o que tinha caído, apresentava o atestado à direção.
O que me grilava é que, na tropa de elite, líamos como uns loucos. Mas Celeste jamais citava um livro. Sei lá. Eu achava tristes seus olhos quando falávamos de livros. Isto é, o tempo inteiro. Exceto quando Túlio dava aula de música contemporânea, que no caso era gente do naipe de Miltom Nascimento e Carlos Santana. E já emprestava os vinis. Celeste levava. E entendia bem mais que eu. Já chegava era cantando e dançando Buena Vista Social Club.
Não sei por que cargas d'água. A escola resolveu nos dividir em fortes, médios e fracos. Celeste foi para a turma fraca. Ela e um tanto de gente que nós, a tropa de elite, tínhamos como gente nossa.
Celeste não falou mais comigo.
Aí, um colega de corporação, o Porquinho, nos reuniu embaixo da escada, onde a literatura e a música nos presidiam, e segredou que Celeste estava vendendo drogas na escola.
Quase desfaleci. Eu sabia que era atividade ilegal.
Mas teve gente na tropa que comemorou ter uma fornecedora. E a Selma finalmente se vingou de mim: deixa de ser trouxa, Naquinha. A Celeste tá ganhando mais que os professores. O Bruno me falou o salário dele.
Quase tive um troço. Como o Bruno, aquele professor de Educação Física lindo, inteligente, que nos ensinava coisas da vida. Que me apresentou numa fita magnética Don't save a prayer for me now. Como ele podia estar tão íntimo de Selma, e já não conversava comigo a mais de um mês. Éramos, eu, Selma e dezenas de outras, perdidamente apaixonadas pelo Bruno.
Mas então olhava Celeste pelos cantos. E não achava coragem de lhe dizer logo. Deixe-me ensiná-la a ler... Eu tinha medo de estar enganada sobre isso. Ou que ela jamais me perdoasse ter-lhe descoberto o segredo. Já nem conseguia que ela voltasse a nos encontrar debaixo da escada. Mesmo se alguns de meus colegas ficaram seus clientes.
Segui tendo notícias de Celeste por toda a vida. Que ela fez permanente nos cabelos. Depois tatuagem. Cogitou-se que estava grávida. Tinha dinheiro. Ajudava os pais. Ainda que brigasse com eles sem parar, pois eles não podiam concordar que ela chegasse em casa de madrugada, fumasse, viajasse em temporadas.
Soube que Celeste comprou um apartamento na praça da catedral. Uma coisa assim só de rico mesmo. Da última vez, soube que se mudara de vez para uma casa de praia. E que estava rachando de ganhar dinheiro.
Mas quando caio em mim, vejo que baixei os olhos e me pergunto, sem falar, mas a balouçar os brancos cachos. Como é que ela pode viver sem ler e escrever. Como é que ela pode jamais ter lido Alice. Ou Poliana. E mais uma extensa lista de livros que viram a vida do avesso. No que não cria Saramago.
Eu teria querido ver com ela filmes legendados, ouvindo a voz dos atores. E voilà. Ela os teria interpretado com muito mais alma que eu. E eu me admiraria e diria; que bom ter uma amiga sensível assim.
Isso é só mesmo o tempo de piscar lentamente. E levantar-me, coluna um tanto avariada, repetindo alegremente o que dissera Selma: ela ganha mais que você, sua bobona. Tudo bem que você sempre preferiu livros e mantras a ganhar dinheiro. Mas, e aqui já não é mais Selma a dizer. Sou eu mesma quem digo. Celeste deve estar um amor de pessoa.
É que, como Celeste, outros foram sempre deixados sem ler e escrever. Não sei se eles conseguiram se virar tão bem. E talvez eu só ache isso porque amo tanto as letras. E porque sei que Celeste também as amava. Ela ouvia textos e músicas com tanto enlevo. Li para ela um A. J. Cronin inteiro. Um tipo de best seller da época. Li também Olga. Aí não deu mais tempo.

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