Dois olhos negros

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 18 de dezembro de 2016 | 06:04

E para fugir ao desespero do rompimento com o namorado, Catarina foi à mostra de cinema. Uma série de curtas, entrada gratuita. Na avenida principal, fácil de chegar a pé, desembarcando do buzão como de praxe, na rodoviária.
Era tardinha, calor escaldante, tudo lembrava ventilador de teto, girando lento, em fundo vermelho.
Ela baixinha, muito branca, coxas grossas à mostra, sandália de couro amarrada ao tornozelo, longos cabelos de azeviche dados a qualquer vento.
Escolheu fila em que ninguém sentava. E ali misturou imagens durante quatro horas. Não sabia se assistia ao eterno retorno das lembranças do namorado, se dormia e via imagens em sonho, se captava enquadramentos e tomadas na telona. Certa vez, acordou e viu na tela uma moça diante de uma janela cuja luz a iluminava. Como uma pintura renascentista. O realizador teve o cuidado de manter estática a câmera, para apreciação. Gratidão ao realizador.
O professor, solitário na fila em frente, às vezes dormitava, como ela. Antes da sessão, um dileto ex-aluno o cumprimentara.
O cinema autoral, experimental, alternativo, seja lá que denominação agora lhe caiba, não raro é hermético, pensou. No narrativas. Disse o comentador.
Saiu zonza. Sentiu-se analfabeta e consolou-se com a sensação de que todos na plateia tinham estado entediados. Sendo eles os estudiosos e professores. Procedeu ao passo miúdo de quem nada via à sua frente pois o que via era o atrás, o namorado, as cenas da mostra.
Via imagens memórias nos vidros dos edifícios. Pés descalços sobre cacos de vidro azul, creque, creque. Como Cristo sobre as águas. E aos cacos sobrepostas camadas de folhas secas davam ideia de um verdadeiro outono.
Plus size. Ei garota, você é meu puf. É mais fácil lhe ensinarem a mudar do que ensinarem a todos o respeito à diferença. Expressões do documentário sobre ser gordinha ou vozes recônditas de sua própria experiência?
E ah o namorado. Barbas grisalhas, textura boa de pousar a mão. Como viver sem seu cuidado e sua mão de ferro. Sem o seu gesto gentil de abrir a porta do carro. Sem a sua severa admoestação. Você precisa de cadeiras mais sólidas.
No aquário solitário peixinho. Tão igual a qualquer outro que, morto e substituído, continua Juarez. Porque solidão ainda maior parece ser a da jovem mulher dona de Juarez, o Primeiro e o Segundo.
Uma vista para as montanhas da latinoamérica, que em todo lugar as há. A paixão adolescente tornada impossível pela gravidade. E o menino, aguardente.
E mesmo assim, ah o namorado. Sua voz lendo em voz alta, sua velha bossa nova. Sua desesperança: a alta cultura acabou.
Passos miúdos. Nada vendo. Quando os ouvidos captaram estalidos. Um som de deejay outro lado da larga avenida. Seus passos a foram levando curtinhos furtivos, sandálias arrastadas.
E se houvesse cortina seria como máquina do tempo. Atrás da qual homens e mulheres negras a dançar. Como se as pernas fossem líquidas e os estalidos sempre os mesmos. As coreografias de muito variar.
Ela branquinha plus size classe média atraía olhares curiosos e acolhedores. A senhora de fartos cabelos crespos aos quais o vento modelava. Uns sapatos bicolores coletes de paetê. Uns dreads uns cabelos trançados, um terno verde. No pescoço um rosário. O sangue escorrendo pelo ralo, os tons sépia, a mulher tatuada vendendo atributos do reggae. Também plus size. Um baile vespertino. Uma confraternização negra das gentes de todas as cores.
Mas ah o namorado. Como podia amar tal pança. Talvez gostasse da leitura ritmada.
Cacos de vidro tilintavam nas caixas de som do disk jockey. Os pés dançavam súbita alegria. Os figurantes transeuntes experts anônimos a cumprimentavam no gingar. Lábios e dentes sorriam. Flutuava lépida gordinha e pim! Não era o estampido para o filme começar. Mas a lembrança de que o chegante buzão tinha horário. E de que era bom não esperar anoitecer.
Foi saindo de costas, dançando miudinho, quando o som do berimbau. Ê, volta pro mundo camará. Ê-ê! Mundo dá volta, camará. Uns dreads, uns cabelos trançados, um lenço no pescoço, o homem bêbado, vem prá roda! Bom vaqueiro, bom vaqueiro...
Foi saindo de fininho. Tantas janelas da alma. Dois olhos negros a chamar: vem prá roda! Mas ah o namorado...


(Viagens a beagá)
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