Vinte anos de reforma no Ensino Fundamental do Brasil
Written By Ana Claudia Gomes on quinta-feira, 8 de dezembro de 2016 | 10:03
Em 2016 completei vinte anos de serviço como docente do Ensino Fundamental em Betim, nas Minas Gerais do Brasil. São vinte anos de participação na reforma educacional deste nível de ensino, instituída pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, número 9.394, de 1993. Considero útil trazer este balanço como forma de diálogo com meus pares e os pesquisadores em educação. Trata-se de uma visão micro. Um relato de experiência.
Considero como carro-chefe da reforma o combate à reprovação escolar anual dos estudantes, que apresentava altos índices no Brasil.
Os propositores da reforma tinham acesso a dados que mostravam a reprovação escolar como uma prática desfavorável à escolarização da população brasileira. Segundo eles, com os quais concordo, a reprovação em médio prazo leva ao abandono da escola. O estudante se crê incapaz de aprender os conteúdos da escolarização e tende a ingressar no mercado. Formal ou informal. Alguns colegas creem que a reforma previa e intencionava isso mesmo.
Nesse meio tempo, atuei em dez unidades escolares diferentes, com ensino regular ou para jovens e adultos. Pesquisei e participei da formação continuada de professores. Tive acesso a discussões de gestão. E nos últimos três anos voltei a refletir sobre o tema dentro de unidades escolares.
Os dados de que disponho são favoráveis à reforma. Percebo que reduzimos drasticamente o abandono, com ajuda de políticas de distribuição de renda. Ainda praticamos exclusão daqueles que resistem muito à organização do ambiente escolar, mas através da transferência a outros estabelecimentos de ensino. O que significa que o estudante encontra nova oportunidade.
O desempenho acadêmico formal é baixo quando medido por instrumentos escritos, mormente provas formais em múltipla escolha. Creio que um terço dos estudantes conclui o Ensino Fundamental como leitor proficiente e capaz dos cálculos fundamentais na vida cotidiana. Um outro terço domina a mecânica da leitura. Um último terço tem dificuldades com a mecânica da leitura. Mas isso não impede o aprender.
Na escrita os dados são piores. Mas a escrita tem menos uso social do que a leitura. Devo defender que vamos bem, embora pudéssemos estar melhor. Com financiamento adequado ao que se propõe nas agências multilaterais; com gestão e condições adequadas de trabalho; com uma reforma profunda da formação dos profissionais; com políticas sociais firmes para a melhoria das condições de vida do povo. Tudo o que parece estar na contramão dos tempos atuais.
Quando o currículo é a vida. Isto é, temas e projetos de interesse dos adolescentes, dos quais falo aqui com prioridade, o desempenho é alto. Em trabalhos de campo, em atividades para fazer com as mãos, em atividades físicas, em atividades culturais em geral.
Quando o desempenho escolar é avaliado com instrumentos orais ou cinestésicos, os resultados são muito bons. Muitos estudantes não falam nas aulas formais, mas expressam com o olhar e com o corpo as emoções do acesso ao conhecimento. Para ser avaliado assim, o desenvolvimento do conhecimento escolar depende da observação cotidiana do docente.
Ainda utilizamos pouco os registros da história familiar, social e escolar do estudante. As escolas produzem muitos registros nesse sentido que, em sendo mais utilizados, podem contextualizar melhor a situação do estudante. Mas a sensibilidade nesse sentido avançou anos-luz em minha opinião.
As atitudes de adequação ao ambiente escolar são as mais problemáticas em minha opinião. Normalmente são designadas como disciplina ou comportamento. Parte significativa dos adolescentes, talvez a metade, se manifesta contrariamente à organização dos ambientes escolares. Falo da distribuição do currículo nacional comum em disciplinas. Da distribuição dos estudantes em grupos rígidos, as classes. Da apresentação do conhecimento mormente através de instrumentos escritos ou orais. Da adoção das lógicas de pesquisa internas das disciplinas no ensino. Dos exíguos tempos para as atividades corporais e artísticas.
Em todas as escolas onde atuei, sempre houve, dentro das condições possíveis, quebras dessa tradição de organização. Os docentes têm muito trabalho para organizá-las. Sofrem mesmo uma sobrecarga. Mas se sentem satisfeitos e atribuem bons créditos aos estudantes que participam desses momentos.
Mesmo os estudantes de comunidades severamente atingidas por problemas sociais, quando vão a uma exposição ou ao cinema, quando participam de oficinas e mini-cursos, quando têm oportunidade de aprender fora das rotinas tradicionais, surpreendem positivamente.
Nas redes públicas brasileiras, das quais falo aqui com prioridade, falta financiamento para a educação. Esse dado é do Banco Mundial e de agências afins. Isso, cá na ponta. Na unidade educacional. Redunda em baixa ampliação do tempo diário e anual de escolarização. Em poucas oportunidades para aprender em campo. Ou melhor. Nas cidades. Em baixa diversidade material. Em poucos laboratórios, oficinas e acesso às tecnologias digitais. E certamente condiciona os resultados finais.
Mas há também interferências da própria cultura escolar. A pesquisa em educação diz que a cultura escolar não coincide com as culturas que envolvem a escola. A escola remete a uma tradição secular. Muito das formas de aprender no século XIX no Brasil não condiz mais com as formas de aprender hoje. Por isso, uma auto-crítica da cultura escolar dentro das escolas continua necessária.
Um exemplo simples é se apresentamos um tema através de texto ou através de imagens ou vídeos. Se o texto é lido por um adulto. Mormente se for um texto narrativo. Os resultados são muito bons. Já se um texto é dado a ler, os resultados pioram.
Se for apresentada fotografia, pintura, escultura, documento iconográfico ou filme. Os resultados melhoram significativamente. Os adolescentes adoram mapas, mesmo os bidimensionais.
Ainda quando as escolas não trabalham com jogos digitais, os resultados da prática social nesse sentido aparecem em relatos dos estudantes na escola.
Para que a cultura escolar faça auto-crítica, a formação dos professores jamais deve parar. Observo que seus resultados são descontínuos, mas estão sempre presentes como vozes que se elevam nas equipes docentes e fazem todo o grupo aguçar o olhar.
Cursos para professores são muito importantes. Ao longo de toda a sua vida profissional. Mas é a conversa cotidiana no ambiente escolar que mais forma os profissionais da educação. O tempo para isso deve ser instituído.
Nesse aspecto, faço uma crítica à reforma. À sua excessiva burocratização. Os analistas da reforma viam essa burocratização como uma tendência. Que os docentes seriam chamados a produzir dados estatísticos em profusão, para que os sistemas apresentassem resultados à sociedade. Pois o clamor geral era de fracasso.
A burocratização, ao privilegiar a produção de dados numéricos, desumaniza a avaliação e sua capacidade formadora. Quando os contextos escolares permitem que os docentes e outros profissionais da escola compartilhem elementos subjetivamente captados entre os estudantes, a visão geral sobre estes melhora.
Tendo as estatísticas se tornado uma necessidade social a respeito da educação. É necessário garantir condições para que tal trabalho se realize sem prejuízo do olhar recíproco entre adultos e adolescentes no contexto escolar. Considero importantíssimo que, uma vez produzidos, os dados estatísticos sejam objeto de reflexão pela equipe da escola. Já o serão por parte dos sistemas. Mas se a equipe os compreende primeiro, ela vê os frutos de seu trabalho e caminha.
Para que as atitudes dos estudantes melhorem no sistema escolar, os pavilhões escolas devem ser considerados por enquanto como bases de lançamento. Lugar de planejar, registrar e avaliar. O lugar de aprender é na cidade. Ou em campo.
A sociedade esperneia, com razão, quando seus jovens não sabem ler ou somar. Por isso, as escolas não devem descurar de perseguir os elementos da cultura escolar socialmente valorizados. Devem ter uma relação crítica com o currículo.
Aliás, aqui é bom falar dos livros didáticos. Grande conquista. Os adolescentes gostam muito de recebê-los, folheá-los, pesquisar os temas de interesse. Porém são produzidos numa lógica universalizante. O mesmo conteúdo geral para todo estudante no Brasil. A linguagem também obedece a um padrão mais científico do que didático. Os livros precisam ser criticamente utilizados. Uns capítulos. Uns trechos. Umas imagens. Depende da comunidade. Os autores de livros didáticos precisam avançar muito em reflexão metodológica e didática. O que só pode ser feito sistemicamente, via nível federal. O docente é o mediador entre o livro e o olhar do estudante.
Estou satisfeita por ter sido sujeito ativo por duas décadas nesta reforma brasileira. Vejo os estudantes que seguem comigo muito melhores do que sei retroativamente de meus pais e meus avós como estudantes. Eles fizeram parte dos que precisaram abandonar a escola. Ou nela não chegaram a entrar.
A garotada brasileira sabe muito. Vamos botar dinheiro, Brasil. Vamos gastar direito. Vamos ter as pessoas como maior potencial do país.
Parabéns Ana pelo trabalho escrito com críticas pertinentes e propostas inteligentes. Afinal são duas décadas de ensino e aprendizado.
ResponderExcluirGrata sempre.
ExcluirMuito boa e pertinente a sua analise.
ResponderExcluirVocê uma estimuladora desde minha chegada. Grata sempre.
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