Beijo de cinema

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 4 de dezembro de 2016 | 11:08

É sem dúvida que, sendo o mundo desde o início dos seus tempos, jamais pôde um mestre ter cem por cento da atenção de seus discípulos cem por cento do tempo. Diante dessa limitação universal, seja mesmo porque o discípulo nem sempre pode acompanhar cem por cento do discurso, alguns ensinantes precisam ter bússolas. Como Clarissa.
São suas bússolas para ensinar os olhares de seus estudantes. Já deu nota apenas pela frequência e qualidade do olhar.
Vai saltando de olhar em olhar dos estudantes até achar um que brilhe mais. Continua então saltando. Mas volta ao olhar que brilha minuto a minuto. Para seguir ou corrigir o rumo.
Pedro já foi sua bússola por quase um ano. Moço bonito. Longos cabelos e já espessa e comprida barba para a idade.
Clarissa falou cada coisa sobre o mundo contemporâneo ao brilho de seu olhar. Mas começou a faltar às aulas. Já lá pra outubro. Clarissa buscou mas não achou substituto para esse marcador de norte.
Foi aí que viu Pedro matando aula. Numa parte escurinha da quadra de esportes. Ele e a loura Nara, sua colega de classe. De quem Clarissa sentira a ausência mas não a falta. Mestre sem preconceito é que jogue a primeira pedra.
Eles se beijavam de corpo inteiro. Assim como no tipo ideal de Clarissa, O Beijo de Gustav Klimt. Ela esperou a duração e pensou clichê. Não aprovara a escolha de Pedro para a paixão.
Teve humildade. Para que denunciar o casal se ela mesma quereria um beijo como aquele. E se sua bússola não precisava dela para aprender nada que desejasse.
Tempo passou. Clarissa foi saltando de escola em escola. As do sistema educacional. As da vida. E sempre olhos que brilham como bússolas.
Por acaso encontrou uma antiga colega e atualizou muitas de suas memórias. Aquele abraço de alegria. As lindas notícias. Como a do mestre de física e dançarino que se aposentou. Não da dança.
Então a pergunta que esperava em cólicas para saltar da boca. Soube do Pedro e da Nara? Soube não. Eles se separaram, menina. Um escândalo. Ela ficou muito tempo em cárcere privado. Recebendo leves torturas físicas. Queimaduras de cigarro. Várias vezes por dia. Estava desfigurada. Disseram que o Pedro tinha um ciúme doentio.
Desconcertada. Duvidando de toda bússola. Clarissa só pôde articular um quase sussurro: então eles se casaram? E pensou no falho julgamento que pode presidir um professor quando pensa ter encontrado um estudante genial.


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