Beijo de cinema

Written By Ana Claudia Gomes on domingo, 4 de dezembro de 2016 | 11:08

É sem dúvida que, sendo o mundo desde o início dos seus tempos, jamais pôde um mestre ter cem por cento da atenção de seus discípulos cem por cento do tempo. Diante dessa limitação universal, seja mesmo porque o discípulo nem sempre pode acompanhar cem por cento do discurso, alguns ensinantes precisam ter bússolas. Como eu.
São minhas bússolas para ensinar os olhares de meus estudantes. Já dei nota apenas pela frequência e qualidade do olhar.
Vou saltando de olhar em olhar dos estudantes até achar um que brilhe mais. Continuo então saltando. Mas volto ao olhar que brilha minuto a minuto. Para seguir ou corrigir o rumo.
Pedro já foi minha bússola por quase um ano. Moço bonito. Dois olhos negros. Longos cabelos e já espessa e comprida barba para a idade.
Falei cada coisa sobre o mundo contemporâneo ao brilho de seu olhar. Mas começou a faltar às aulas. Já lá pra outubro. Busquei mas não achei substituto para esse marcador de norte.
Foi aí que vi Pedro matando aula. Numa parte escurinha da quadra de esportes. Ele e a loura Nara sua colega de classe. De quem eu sentira a ausência mas não a falta. Mestre sem preconceito é que jogue a primeira pedra.
Eles se beijavam de corpo inteiro. Assim como no meu tipo ideal. O Beijo de Gustav Klimt. Esperei a duração e pensei clichê. Não aprovara a escolha de Pedro para a paixão.
Tive humildade. Para que denunciar o casal se eu mesma quereria um beijo como aquele. E se minha bússola não precisava de mim para aprender nada que desejasse.
Tempo passou. Fui saltando de escola em escola. As do sistema educacional. As da vida. E sempre olhos que brilham como bússolas.
Por acaso encontrei uma antiga colega e atualizamos muitas de nossas memórias. Aquele abraço de alegria. As lindas notícias. Como a do mestre de física e dançarino que se aposentou. Não da dança.
Então a pergunta que esperava em cólicas para saltar da boca. Soube do Pedro e da Nara? Soube não. Eles se separaram, menina. Um escândalo. Ela ficou muito tempo em cárcere privado. Recebendo leves torturas físicas. Queimaduras de cigarro. Várias vezes por dia. Estava desfigurada. Disseram que o Pedro tinha um ciúme doentio.
Desconcertada. Duvidando de toda bússola. Só pude articular um quase sussurro, então eles se casaram? E pensei no falho julgamento que pode presidir um professor quando pensa ter encontrado um estudante genial.


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